Cinco anos
Há um vídeo partilhado com frequência de uma entrevista de David Bowie a adivinhar a Internet antes de ela ter sido inventada como hoje a conhecemos e aceitamos. É um trecho de uma visão extraordinária em que imagina um futuro fragmentado de possibilidades múltiplas. Entre outras reflexões, lança a ideia presciente de a comunidade ser tão importante quanto o criador. É o anúncio não oficial da tão falada democratização que pôs fim a uma série de absolutismos e hierarquias verticais.
Há cinco anos, Bowie deixou-nos duas vezes. A 8 de Janeiro de 2016, chegava o extraordinário Blackstar. Um epitáfio testamental de uma obra adiantada ao seu tempo, apesar de reconhecida e amada — são raros os casos de visionarismo compreendido e assimilado. Bowie sabia que meio e mensagem eram inseparáveis como Hansel e Gretel. Dois dias depois, o corpo partia. As derradeiras imagens captadas durante a estreia do musical Lazarus, em Nova Iorque, mostravam-no magro e envelhecido, provavelmente consciente da proximidade do fim. Foi essa capacidade de antecipação que o levou a preparar todos os detalhes. Durante a semana de rodagem do vídeo de Lazarus, os médicos informaram-no sobre o estado terminal do cancro. E as imagens reflectem-no. Deitado numa cama de hospital, um Bowie vendado deixa pistas nas palavras para responder a enigmas futuros, sem, no entanto, desvendar todo o mistério: “Look up here, I’m in heaven/I’ve got scars that can’t be seen (…) Look up here, man, I’m in danger/I’ve got nothing left to lose“.
Na semana passada, o líder da banda de suporte de Blackstar, o músico nova-iorquino de jazz Donny McCaslin, revelava que Bowie não pensara o álbum como um derradeiro aceno e dava conta de uma conversa sobre possíveis concertos no Village Vanguard de Nova Iorque. Pode não ter sido assim, mas os vestígios estavam lá e mal a sua morte foi anunciada, o sentido das letras modificou-se radicalmente. Bowie e o produtor Tony Visconti, cúmplice de décadas, andavam a ouvir compulsivamente To Pimp a Butterfly de Kendrick Lamar. Tal como Bowie, o rapper de Compton contraria expectativas e desarma preconceitos, plantando nesse que é um dos álbuns cruciais da década a semente para uma nova era em que o jazz voltava ao seu princípio existencial: a liberdade.
Se até aí Bowie já era uma omnipresença, de então para cá a veneração banalizou-se. A adoração e a idolatria são naturais e compreensíveis, mas Bowie só foi possível por questionar o adquirido e confrontar a própria iconografia, ao matar personagens como Ziggy Stardust ou desejar novos mundos como a soul e o funk de Diamond Dogs, a Alemanha de Kraftwerk, Neu ou Tangerine Dream na trilogia berlinense de Low, Heroes e Lodger, o jungle em Earthling ou por fim o jazz infiltrado na poesia comunitária de To Pimp a Butterfly de onde o magistral Blackstar bebeu.
A morte é apaziguadora e geradora de consenso, mas Bowie só é recordado no pretérito perfeito por ter ousado um futuro sem nome. Há alguns anos, aquando do surgimento de Lana Del Rey, e do amplo debate sobre autenticidade ou dissimulação, o Stereogum estabelecia uma comparação entre as personas de ambos para defender que Bowie não teria “paciência” para um tempo como este. Talvez não, mas até por isso vale a pena compreendê-lo para além do brilho da estrela. Ele ensinou-nos a amar o extraterrestre. A sermos quem não fomos antes. A nascermos todos os dias. A querer compreender o outro, comunicar com ele e estimulá-lo através da diferença. A não termos medo do futuro e a enfrentar o desconhecido. Num tempo de conquistas ameaçadas e liberdades condicionadas, pode parecer que não, mas é ser-se herói mesmo que por um dia.