Cinco filmes como recomendação para o final de Verão
Na adolescência, o verão possui tanto de eterno, como de efémero. Quem não recorda, com saudade, os dias de verão de uma adolescência apagada, em que o som das cigarras acompanhava as tardes molengonas e fazia serenata às intermináveis conversas de alpendre, durante a noite? Serões esses, passados entre amigos, diálogos de expectativa sobre amores e planos para o almoço, ou seria ao contrário? Uns esboços de acordes de guitarra, aqui e ali, que surgiam de um modo de tal forma espontâneo que pareciam fazer parte da palheta. No peito dos espíritos inquietos, calor, a mesma brasa que liquidifica o pensamento quando a modorra ataca, escoa os parcos problemas entre gotas de cerveja ou os dissolve na frescura de mais um mergulho na piscina.
Nos últimos dias deste Agosto, recordei, fechado num apartamento citadino, os verões da minha adolescência beirã. Revi o filme “Maria do Mar” (2015), do realizador João Rosas, assisti a “Cães que Ladram aos Pássaros” (2019), a última película de Leonor Teles, receita ideal para as noites de calor, que me abriram o apetite para uma almoçarada junto à costa com Eric Rohmer e acabei a assistir, por isso, a “Conte d’été” (1996). Por último, “A Caminho do Verão” (2022) vi, ainda, uns “Jovens Loucos e Rebeldes” (1993).
“Maria do Mar”, de João Rosas
“Maria do Mar”, escrito e realizado por João Rosas e disponível na plataforma de streaming FilmIn, é, para mim, um dos mais solenes e solarengos filmes portugueses sobre a adolescência.
Seguimos Nicolau (Francisco Melo), um jovem adolescente que acompanha o seu irmão mais velho, Simão (Miguel Carmo) numas férias de verão com amigos de faculdade numa casa de campo nos arredores de Sintra.
Maria, esta do Mar, interpretada por Mariana Galvão, é mais ninfa que sereia, nesta estória costeira sobre a descoberta da idade dos amores. É ela quem atraí as atenções de todos, mas, em especial, dos olhos do protagonista. O rapaz, que “até nem se importava de ter uma namorada”, encontra-se, agora, deslumbrado pela beleza de Maria, e sabe que, após aquele verão, tudo mudará.
O filme conta com subidas às árvores, trabalhos de casa por fazer, truques de magia de algibeira e boémios de coração partido trajados de alien. É uma película pessoal, tão pessoal, que é impensável não nos projetáramos nela. Qualquer irmão mais novo que veja esta curta de Rosas rever-se-á imediatamente no pequeno outsider que é Nicolau. A destreza em representar estas nuances da juventude é algo que o realizador domina particularmente bem, provara-o, inclusivamente, na curta-metragem “Entrecampos” (2012).
“Maria do Mar” possuí aproximadamente de 30 minutos de duração e é uma coprodução O Som e a Fúria. Venceu a 15º edição do Festival de Curtas de Vila do Conde e a 16º do ‘Olhar de Cinema’, o Festival Internacional de Cinema de Curitiba.
Cães que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles
Leonor Teles está a uma curta-metragem de se tornar numa verdadeira autora, no sentido cinéfilo da palavra. A sua destreza com a câmara é absolutamente inigualável, as personagens verdadeiras, os enredos sem norte, mas sempre no caminho certo, tudo convocado num tom continuamente vibrante. “Cães que Ladram aos Pássaros” apresenta-nos temáticas realistas, mas de composição poética. Captado a 16mm, com esboços de influências nouvelle vage e um sentido estético genuíno, singular e fascinantemente nostálgico.
Este filme leva-nos até à cidade do Porto para acompanhar Vicente (Vicente Gil), que se farta de pedalar noite dentro pela Invicta. O rapaz vive os primeiros das suas férias de verão na inquietação do que poderá ser a sua vida dali para a frente, por ser confrontado com a possibilidade de ter de mudar de habitação. Leonor Teles aborda, desta forma, o fenómeno da gentrificação, a especulação imobiliária, o preconceito do que é ser mãe solteira, o companheirismo, a globalização, tudo numa só curta-metragem, sem nunca ser excessivo ou despropositado.
Vicente observa o Porto, em introspeção, a urbe muda e ele muda com ela, já nós, espectadores, também num exercício de autocontemplação e tão parados quanto os reflexos do Douro, vemos Vicente e projetamo-nos nele. Tudo isto recorda-me a frase de um génio das palavras: “É preciso sair da ilha para ver a ilha”, um verdadeiro exercício de empatia. A realizadora-corrijo, autora-alcança o coração da cidade pelo peito do protagonista, o que torna “Cães que Ladram aos Pássaros” uma obra pura e autêntica. Teles é, como sempre, excecional no seu trabalho.
A textura da tela subtilmente granulada como o som satisfatório de um disco de vinil, as entranhas dos locais, o ar fresco da brisa noturna, cabelos rebeldes e espíritos a condizer, a aflição da incerteza em soma com a despreocupação de ser jovem, é isto, “Cães que Ladram aos Pássaros”.
A curta encontra-se disponível na plataforma de streaming Filmin.
“Conto de Verão”, de Éric Rohmer
Gostava de saber escrever sobre Éric Rohmer, pois era sinal de que sei, de facto, escrever. Como descrever o indescritível? Podemos começar assim: o trabalho do titã da nouvelle vage é algo que transcende a vaga sensação de alienação que nos percorre a medula quando consumimos bom cinema, qualquer coisa do género.
“Conto de Verão” (“Conte d’été”) leva-nos até à região de Dinard, o novo destino de férias do jovem Gaspard (Melvil Poupaud), estudante de licenciatura em matemática, onde conhece Margot (Amanda Langlet), uma rapariga invulgar que trabalha no café local para ajudar a pagar o seu doutoramento em etnologia.
Margot encarrega-se de meter o protagonista num triângulo amoroso tão ou mais arcano que o das Bermudas quando o apresenta a Solène (Gwenaëlle Simon). Gaspard, que esperava a sua namorada (ou algo do género) encontra-se agora dividido, entre amores, desamores, músicas de marinheiros e mais um mergulho no mar.
“Conto de Verão” é uma verdadeira viagem, ida e volta, ao sul de França. O trabalho de fotografia é sublime, os movimentos perfeitamente coreografados e emparelhados à dinâmica das personagens, a montagem, modelarmente discreta, transporta-nos com ligeireza de conversa em conversa e de cena para cena, o enredo faria Woody Allen delirar, os diálogos acompanham, ao ritmo da idade, as inquietações do protagonista. É o suprassumo dos filmes de verão à moda do enorme Éric Rohmer.
“A Caminho do Verão”, de Sofia Alvarez
Esta é a sugestão comercial, o “peixe fora de água” que levará muitos dos snobes do cinema a pensar: “que raio está este filme aqui a fazer?!”. Não, não é uma Criterion pick ou uma seleção Notebook da Mubi, lamento desapontar, mas é uma boa recomendação se tudo o que procuram é um filme para acompanhar uma visita dos primos mais novos ou uma estória que não dê muito em que pensar.
“A Caminho do Verão” (“Along for the Ride”) é baseado no romance homónimo de Sarah Dessen e apresenta-nos a Auden (Emma Pasarow) que, durante as férias de verão antes de ingressar na universidade, decide fazer uma visita ao seu pai na pacata cidade litoral de Colby, na Carolina do Norte. Durante as suas férias, e acompanhada do rapaz-mistério, Eli (Belmont Cameli), a protagonista forma amizades, redescobre a paixão romântica e cumpre uma bucketlist de coisas nunca feitas durante a infância.
Não esperem diálogos filosóficos junto ao mar sobre romance e existencialismo, nem grandes discursos que brotam do espírito introspetivo, próprio da pós-adolescência, esperem antes um filme divertido que, apesar de tudo, está tecnicamente bem produzido. A fotografia é, em parte, radiante, os cenários poderiam ser quadros de um Edward Hopper, as performances prestam serviço ao enredo e o trabalho de realização é, ainda que bastante convencional, bem executado.
Claro que parte mais cética e crítica do meu âmago cinéfilo poder-me-ia levar a constatar qualquer coisa como: “não é um filme, é um instastory com 1h46m”, mas deixemos essa faceta aborrecida para o inverno, pois, ainda que compasso das emoções seja ditado pelo tom nostálgico das teclas de um sintetizador e a estória se encontre repleta dos velhos clichês girl meets boy, as escolhas musicais indie-pop-rock deixam-nos a ‘abanar o capacete’ enquanto os jovens da pequena cidade de Colby circulam nos seus descapotáveis, mas em vez de dazed and confused estão antes “woke and melancholic”.
“Jovens Loucos e Rebeldes”, de Richard Linklater
Aos tais snobes suprarreferidos, digo-vos, agora: “alright, alright, alright”, aqui está a vossa eleição da Criterion.
Maio de 1976, é o último dia de aulas na pequena cidade de Huntsville, Alabama. A azáfama instala-se pela aquilo que parece ser costume no final do ano letivo: praxe, ou melhor, caça aos pequenotes e pequenotas que terminaram o ensino básico e estão prestes a ingressar no ensino secundário.
“Jovens Loucos e Rebeldes” (“Dazed and Confused”) é um autêntico ciclone de banalidades imbuídas num espírito profano, irreverente e mundano, tudo isto numa homenagem prestada ao clássico de George Lucas, “American Graffiti” (1973).
Boémia sem precedentes, rapaziada despreocupada, agitação, rumor, muita farra, cerveja e boa música. Linklater almejava um enredo descomplexado, desgarrado de grandes dramas, enriquecido pela simplicidade de uma era e conseguiu-o, mantendo-se, assim, insubmisso às despóticas rédeas das narrativas dos filmes coming of age. Mais que uma jornada, “Jovens Loucos e Rebeldes” é um segmento de vida em 35mm.
O elenco conta com atores como Ben Affleck, Rory Cochrane, Parker Posey e, ainda, com a primeira aparição do lendário Matthew McConaughey no grande ecrã.
Para quem se quer despedir do verão “à grande”, está aqui uma bela noitada.
Os filmes de estio são, à semelhança dos amores de verão, efémeros, substâncias fugidias, eternizadas pelo que simbolizam na altura em que os vivemos. Podem não permanecer eternamente na memória do cinéfilo e, provavelmente, se nos cruzássemos com algumas destas películas noutra altura do ano, nem os reconheceríamos da mesma forma e fugiríamos deles a sete pés, mas não deixam de ser, em seu jeito, perpétuos.
Os tons pastel, os letterings amarelos sobre a tela baça e colorida, a profundidade de campo superficial que amplia os LED’s e as luzes noturnas, as danças despreocupadas, as manhãs tardias, as noites perenes, a subtileza da idade e o limbo entre a inocência e a curiosidade são os ingredientes perfeitos para um filme com cheiro a verão e, no caso de “Jovens Loucos e Rebeldes”, outros aromas.