‘Clean’: a luta de Soccer Mommy pelas paisagens da sua adolescência
Eis a frase, verbatim, que acolhe visitantes, exploradores e velhos conhecidos ao bandcamp de Sophie Allison: chill but kinda sad. A profícua colecção que o enche – apenas desde 2015, quando Sophie tinha 18 anos – é encabeçada por títulos como songs for the recently sad ou songs from my bedroom, primeiros lançamentos que vêem nascer a linha estética do projecto, que teve início quando Sophie deixou Nashville para estudar em Nova Iorque. As origens importam: especialmente porque Soccer Mommy vive do redemoinho de sentimentos que espalha cor pela adolescência, na linha ténue que separa o sarcasmo de um downcase e a honestidade da melancolia. Na música primordial que lança ao público, a sua voz ressoa na distância, coberta pelo instrumental lo-fi conjurado algures das profundezas do seu quarto, dedilhado com gentileza ou espalhado pela textura sonora – são lançamentos caseiros caracterizados por um incaracterístico e vespertino profissionalismo. Emocionalmente carregadas, as letras não abalam a voz de Sophie, e – intencionalmente ou não – guitarras distantes da qualidade aceitável são transformadas em ruído quente que embalam o ritmo lânguido da mensagem.
Avançar pelo catálogo da artista é como ler o seu diário pessoal: atravessamos festas e desilusões, saudade e esquecimento. Na primeira pessoa, vivemos amores esquecidos e, ainda mais intensos, sentimos aqueles que nunca aconteceram mas que são demasiado importantes para esquecer. As personagens são formas abstractas traçadas em linha hábil: o you de Allison é universal – nele são reflectidas as discussões internas no pátio do secundário e as noites solitárias no quarto, enquanto não vibra o telemóvel. A música oscila tanto com as emoções como com as estações: entre o registo folk mais gentil ou o rock levemente despreocupado, acaba por se desvanecer o lo-fi. Collection – compilação do Verão anterior ao lançamento de Clean – que vê os temas que marcaram os dois anos anteriores da vida de Sophie a ganharem nova roupagem instrumental. Onde antes limitações técnicas cobriam o desejo artístico subjacente, o LP de antigas melancolias de quarto brilha cristalino; Soccer Mommy em controlo completo da mensagem.
Clean surge não como um destaque ou anomalia, mas como mais um passo natural da gradual escalada na música de Soccer Mommy. É deste mesmo som em constante progressão e das indecisões da sala de ensaios que nasce o álbum – e muito do que é dito dos seus antecessores é-lhe também aplicável sem cortes ou edições. Tal como em Collection, aqui encontramos melhoramentos e reedições. Agora com 20 anos, Sophie Allison vive simultaneamente dentro e fora das narrativas que traça – histórias campestres e outonais, tão típicas de uma idade pautada pelo ritmo do ócio e da liberdade que vai deixando de ser a sua. Se nos seus primeiros lançamentos a despreocupação sonora, ironia adolescente e a lânguida honestidade tornam patentes a urgência do conteúdo sobre a forma, o mesmo não pode ser dito de Clean. O som cristalino e as melodias aperfeiçoadas deixam num plano traseiro as narrativas bittersweet de lançamentos como for young hearts ou songs from my bedroom, substituídas por outras histórias igualmente emocionalmente carregadas – porém, mais convencionais – de amor e incorrespondência.
Sophie escreve com mestria e resolução: é impossível ignorar a forma como nos transporta através da faixa de abertura, “Still Clean“, como o narrador incerto de um conto pintado em frescos rurais – paisagens que se repetem na sua escrita e que são tão importantes quanto o folk no imaginário da sua música. “Cool“, num registo mais rock, é subtil na entrega das suas inseguranças; e “Your Dog“, single de eleição, é o registo mais pop-rock do álbum, apesar da mensagem sórdida e determinante acerca da admitida relação abusiva da artista. É em “Flaw“, a calma após a tempestade e uma das mais belas progressões de Clean, que regressa o estilo bedroom mais clássico de Soccer Mommy. De volta estão as imagens tingidas a final da aurora, com a voz de Sophie a cantar o eterno verão melancólico e repleto com sentimentos mistos de relações que ficaram por consumar. Esta descrição, contudo, contrasta com a escrita da faixa seguinte, “Blossom“, que fica muito aquém, apesar da bela melodia.
“Last Girl“, noutro mergulho ao passado, é a nova versão, com mais volume e textura, da faixa originalmente pertencente ao EP do mesmo nome – desenvolvida e directa, segue temáticas próximas da insegurança descrita pela artista em “Cool“. “Skin“, embora muito diferente instrumentalmente, sofre da mesma armadilha de “Blossom“ – uma narrativa mais circular e sem os trocadilhos de honestidade emocional com que Sophie nos presenteia nos seus melhores momentos. Felizmente a artista volta a resgatar parcialmente essa força com “Scorpio Rising“. “Wildflower“, faixa final, é instrumentalmente refrescante e mais exploratória. É também importante por se revelar como peça final no conto coming-of-age de Clean, no desejo mais sincero da artista. É assim que, após Clean, Sophie Allison deixa finalmente a cidade, para se dedicar aos caminhos rurais das suas origens.
Clean é um álbum curioso de analisar. Allison prefere intitulá-lo como álbum de estreia. Completamente isolado, seria uma estreia muito notável de uma artista relativamente obscura: as suas narrativas são frequentemente interessantes, os seus instrumentais limpos e cuidados. Mas a realidade é que, encarado na sequência da discografia prévia de Soccer Mommy, surge como um álbum em que a forma toma o comando do fio condutor e o conteúdo é relegado para o banco de trás. Musicalmente bem construído, apesar de nem sempre notável, é na narrativa lírica que Clean se deixa ficar para trás face a lançamentos como Collection. Não obstante, Sophie Allison entrou de rompante no radar musical mundial; e tudo indica que será um dos nomes mais fortes a manter debaixo de olho para lançamentos futuros que capturem a beleza e melancolia únicas com que algumas das suas composições contam.