Coitado do Zé
Se eu quisesse podia ter tido um caso com Ângela Molina, ela é que não quis.
Foi D. Luis, Grande de Espanha e olho de goraz, quem fez de Ângela Molina a Ângela Molina que ainda hoje é. Há-de tê-la medido de cima a baixo com a licença que a idade autoriza, e, embora correndo a desabrida década de 70 a pintainha nem deve ter piado, a despeito dos seus 22 aninhos e de uma natural propensão para o atrevimento.
Este Luís, não haja equívocos, é o Buñuel, impenitente e originário surrealista, entomólogo dedicado à observação dessa espécie superior e arbitrária de insecto que é o humano, blasfemo para com a igreja, sacrílego para com as formas narrativas. Um “monstro” como em Espanha se diz dos toureiros de cartel, ou um “monstro” como à portuguesa resmunga quem se benze em face de um iconoclasta.
Convencido com o que viu, Buñuel elencou Molina para a metade temperamental e selénica da personagem Conchita, guardando para Carole Bouquet a personificação do seu hemisfério luminoso e plácido. Porque assim e não doutra maneira é que o realizador achou bem, Conchita enverga por conseguinte duas actrizes, fazendo-o sem explicações nem causas, só com o efeito de confundir o espectador mais submisso – ou seja, todos nós – à unicidade entre actor e personagem. Este foi o último e obscuro objecto de desejo que Buñuel filmaria, nos idos de 1977, não admira que quisesse lá saber das regras.
15 anos depois, já éramos todos crescidos e Buñuel defunto, incumbiram-me de pajear Ângela Molina ida e volta de Seteais a Lisboa, convidada pela Cinemateca a confirmar em público que a famosa Ângela Molina não era de facto estrela, mas esplêndida lua que empalidece as estrelas do céu. Ela não arribara ao acaso ou de veraneio ao Monte da Lua, mas viera porque aceitara o papel de cara-metade de Jorge, esse coitado (e coitados de nós, que mal se viu o filme do homónimo Silva Melo, vítima das funestas bolandas da distribuição do cinema português.) Felizmente a memória atraiçoa, de modo que esqueci quem no percurso de regresso ao hotel propôs passarmos juntos parte do dia seguinte em que ela estaria de folga. (Eu? Não me reconheço assim temerário. Ela? A que propósito convidaria aquele galito entufado?)
Toda essa auspiciosa tarde de Sábado nunca saímos da suite do hotel e pouco conversámos, discorrendo-a em livre intimidade. Angela Molina folheava revistas, mesmo as que estampavam mais texto do que fotografias, fumava com desprendimento charros do calibre de círios e sem se distrair com a televisão a cintilar de som desligado, olhava longamente para o ar, abandonada no sofá de robe acetinado e estampado como de gueixa, num torpor de felino saciado. Acomodei-me, portanto, a contemplar os seus vagares, apreciando-lhe o corpo – tão próximo que se tentasse poderia tocá-lo – sem a impostura da discrição, pois percebi que estar atento e ser atencioso era a parte que me competia.
Porque o silêncio é austero ela queria que eu lhe fosse contando coisas interessantes sem serem controversas, de certo modo que a seduzisse, mas sem esforço ou tensão. Não era entretenimento que me pedia como se pede a um galante ou apaixonado, mas a oportunidade de por uma tarde se libertar da obrigação de ser Angela Molina, a vedeta a quem é devida deferência à qual ela se vê compelida a corresponder. Interroguei-me se não estaria a fazer de mim um marido putativo. Se acalentasse alguma expectativa ou mesmo ilusão de que algo de fantasioso pudesse suceder, um repente que eclodisse da ordem do palpitante e secreto, esta sensação de marasmo doméstico que ela de mim desfrutou foi-me desenganando.
Com uma certa regularidade Ângela Molina recaía na figura de Ângela Molina e desanuviava o desapego em que a tarde se consumia apoquentando o room service com caprichos ou minudências. Nada de excêntrico e trabalhoso, apenas para conferir que da porta da suite para fora ainda angariava estatuto de VIP.
Angela Molina era toda sexo, mas só de pele. Quando numa brevíssima sortida fomos às queijadas, que eu lhe havia elogiado como uma das delicadezas da vila, pôs um vestido leve com um decote que não mostrava nada e dizia tudo. Cabeças viraram-se nas ruas húmidas de Sintra à sua passagem, não porque a reconhecessem mas porque pressentiram que aquela mulher exibia algum significado indecifrável e queriam ver o resto.
Ângela Molina foi a única pessoa com quem deparei – ai de mim, falho de mundo… – que na vida só tinha de ser ela própria. Isto é uma propriedade e uma limitação e conforta-me imaginar que por uma tarde contribuí para aliviar fardo tão pesado.
Dei-me à veleidade de semanas depois telefonar um par de vezes para Madrid. Atendia a governanta. Lembrava-se lá Angela Molina daquele pedaço de nada.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização