Colette ou o arquétipo da mulher livre

por Augusto António Cabrita,    19 Agosto, 2021
Colette ou o arquétipo da mulher livre
Sidonie Gabrielle Colette / DR
PUB

Sidonie Gabrielle Colette nasceu a 28 de Janeiro de 1873 em Saint-Sauver-Puisaye, numa aldeia da região francesa da Borgonha, e faleceu em Paris a 3 de Agosto de 1954. Ficou conhecida pela sua profícua actividade artística, mas também pelo seu modo de vida vanguardista, rebelde e independente, tendo causado choque na sociedade francesa da primeira metade do século XX, assente em estruturas socialmente conservadoras e que limitavam o papel da mulher.

Os seus primeiros vinte anos de vida — vividos numa zona plácida e rural — foram particularmente relevantes para o desenvolvimento da sua sensibilidade, imaginação, mas também para o germinar do seu amor pelos animais, nomeadamente pelos gatos. De resto, o ecossistema psicológico e descritivo da sua infância e adolescência marcarão profundamente o seu primeiro trabalho literário, Claudine à l’école (1900). Este livro de contornos autobiográficos é já desenvolvido sob a égide de Henri Gauthiers-Villars, seu primeiro marido, conhecido por Willy – crítico literário e escritor que a oprimiu, obrigando-a a escrever uma longa saga literária assinada com o seu próprio nome.

Seguem-se Claudine à Paris (1901), Claudine en ménage (1902) e Claudine s’en va (1903), série literária que fez furor e se incrustou no imaginário colectivo francês, tornando-se todos eles romances best sellers, ainda que os louros fossem direccionados a Willy. Estas obras, pautadas por uma inspiração autobiográfica, têm como centralidade Claudine — um alter ego de Colette —, bem como as suas aventuras e desventuras num quadro metropolitano onde a ingenuidade existencial se combina com a ousadia, a subversão no ir mais além do que é expectável. No plano da sexualidade, por exemplo, e a partir de Claudine en ménage, há uma clara provocação ao status quo dominante da época quando a protagonista inicia uma relação homossexual paralela aprovada por Renaud (seu marido ficcional). Tudo para que, no plano da realidade, Henri Gauthiers-Villars (Willy) pudesse acumular longos remanescentes, vivendo excentricamente e pagando igualmente as suas dívidas.

Em 1906, Colette abandona Willy, agastada pela sua imoralidade e por uma condição existencial cativa e subordinada. Nesse mesmo ano havia conhecido a marquesa de Balbeuf, vulgo “Missy”, uma mulher assumidamente homossexual, de natureza independente e reformista. A marquesa, que questionava regularmente a bifurcação de género nas suas mais variadas formas, vestia-se com indumentárias masculinas em pleno começo do século XX. Teve não só um papel muito importante na emancipação de Colette como mulher livre, mas também no plano autoral, onde depois de se conseguir divorciar de Willy, num longo processo que durou anos, Colette ganhou a possibilidade de publicar com o seu próprio nome.

É, desde logo, nesse quadro de autonomia existencial — ainda que com vicissitudes quotidianas e financeiras – que publica Vagabonde (1910) e L’envers du music-hall (1913), obras inspiradas nas suas vivências da época, quando se torna uma errante dançarina de music-hall. As suas descrições, que emolduram com um talento muito próprio um mundo sensitivo, expondo igualmente o potencial dinâmico e tumultuoso da condição humana, retratam nestas duas obras tempos de instabilidade profissional, alternados com meditações sociais e ontológicas.

Em 1912, casa-se com o jornalista Henri de Jouvenel, editor-chefe do jornal Le Matin, para o qual começa a redigir pequenas novelas e textos dramáticos. Do casamento resulta a sua primeira filha, Colette de Jouvenel (nascida em 1913), que foi, por exemplo, retratada na obra La paix chez les bêtes (1916) com o nome Bel-Gazou — romance onde a autora teve como intenção reunir animais num “enclave onde não existisse guerra”. Recorde-se que na altura a França era um dos epicentros da primeira guerra mundial.

Há, contudo, uma maturação da sua obra a partir dos anos vinte do século passado; de resto, a própria autora intitulou o tempo anterior a essa fase como um caminho de aprendizagem existencial e artística, algo que é explicado em Mes Aprentissages (1936), um conjunto de várias cartas que trocou com personalidades da época e que contêm reflexões diacrónicas sobre o seu percurso.

Em algumas fases do seu registo, houve também uma pronunciada intercalação entre o plácido e o ebulitivo. Entre o hedonismo sentimental e a contemplação. É o que constatamos, por exemplo, no período onde Colette explora tanto a intempestividade prazerosa do pós-guerra com Chéri (1920), La blé en herbe (1923) ou La fin de Chéri (1926), como quando regressa à natureza, à família, ao refúgio imaculado da sua casa de infância com La maison de Claudine (1922) e Sido (1930).

Em 1935, casa-se com Maurice Godeket, também ele jornalista e escritor. Foi o terceiro casamento de Colette, facto que acentuou ainda mais o seu modo de vida polémico para a época. Viria, contudo, a ser o seu último esposo, aquele com quem foi igualmente mais feliz. De resto, Maurice Godeket publicou em 1955 um livro denominado Près de Colette onde relata o seu percurso ao lado da indulgente escritora.

Colette cresce em reconhecimento com o passar dos anos. Em 1935, torna-se membro da Real Academia Belga. Dez anos mais tarde, é seleccionada para a Academia Goncourt e é ainda distinguida como Grande Oficial da Legião de Honra francesa, títulos, até então, praticamente inauditos para um mulher.

É nesse período que publica obras como Ces Plaisirs (1932), onde se debruça sobre aspectos da sexualidade feminina, Duo (1934), mas também, e num momento ulterior, Gigi (1944), um dos seus mais notáveis trabalhos. Gigi é a história de uma jovem parisiense educada com vista a tornar-se cortesã. Nela encontramos a habitual sensualidade, a irreverência e até o erotismo da pegada autoral de Colette. Traduzida para português por José Saramago, foi, tal como outras obras da gaulesa, adaptada ao cinema, a musicais e a peças de teatro. No caso de Gigi, venceu mesmo o Óscar de Melhor Filme no ano de 1958 em Hollywood.

Apesar de nunca se ter assumido como feminista, Colette deixou-nos como legado a ousadia, a subversão, a liberdade de ser de uma mulher à frente do seu tempo e que desde cedo fez tudo o que desejou fazer. Foi a própria que sempre reiterou essa intenção. Reuniu a admiração de personalidades como Marcel Proust, Jean Cocteau ou Julien Green. 
Colette viria a falecer a 3 de Agosto de 1954 no seu apartamento do Palais Royal em Paris, rodeada de uma espécie que muito retratou nos seus livros e que de facto amava — os gatos.

Foi uma das poucas mulheres francesas que após falecer teve honras de estado em França, no passado século.



Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.