Com as dores dos outros posso eu bem

por Renato Daniel,    5 Julho, 2025
Com as dores dos outros posso eu bem
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Vivemos num tempo glorioso. Um tempo em que podemos reclamar nas redes sociais, indignar-nos nos grupos de WhatsApp, fazer stories a dizer “que tristeza o mundo de hoje” e… está feito. Veja-se o milagre acontecer! Já posso voltar a ver Netflix como se nada tivesse a acontecer. Sim, os direitos fundamentais estão sob ataque em vários cantos do mundo, mas… não é comigo, pois não? E enquanto não for, com as dores dos outros posso eu bem.

A liberdade de expressão, a igualdade (essa coisa inconveniente que insiste em não deixar ninguém de fora), o direito de amar quem quisermos, de decidir sobre o próprio corpo ou de simplesmente caminhar na rua sem medo… tudo isso foi, durante muito tempo, dado como certo. Como a app do banco ou o botão do elevador: está lá, funciona, não se pensa muito nisso. Só que, ao contrário do botão que quando falha se resolve com um telefonema, quando a democracia falha, não há técnico de serviço. E se não formos nós a reparar a avaria, o problema torna-se grave. Muito grave.

No dia 28 de junho, em Budapeste, cerca de 200 mil pessoas encheram as ruas. E não, não foi um festival de música nem a Black Friday espantem-se! – foi mesmo uma manifestação contra a proibição da marcha LGBTQ+. Uma daquelas coisas que só se fazem quando alguém sente que os seus direitos estão a ser roubados à força. Porque, sejamos honestos, enquanto forem só os direitos dos outros, conseguimos dormir bem e jantar em paz…

Só que, aí de nós, quando nos mexem naquilo que achávamos garantido. Quando a dor bate à porta e percebemos que isto da “coisa pública” também nos dói a nós. Aí sim, somos todos ativistas. Até lá? Vamos fingindo que está tudo bem. Afinal, com as dores dos outros posso eu bem. Não é o que todos dizemos (ou pensamos), mesmo sem abrir a boca?

Repare-se: grupos extremistas investiram mais de 3 milhões de euros em campanhas digitais contra o aborto. Sim, três milhões. Para restringir um direito das mulheres com fake news embrulhadas em moralismos e frases fofinhas. Mas como o útero não é nosso, e o problema é “lá longe”, seguimos em frente. Indignados por um post, mas calados perante um retrocesso. Este já não era um assunto mais do que fechado na sociedade? Pois… secalhar não há assuntos fechados…

Nos Estados Unidos, a política de deportações é uma espécie de Big Brother rasca. Um reality show triste de famílias separadas, vidas desfeitas, dignidade deitada ao lixo em live TV! Mas tudo em nome da “ordem”!! E nós? Nós lá seguimos com as nossas vidas, talvez com um ligeiro desconforto, mas nada que nos tire o apetite. Porque, enfim… com as dores dos outros posso eu bem.

Na Europa, a igualdade salarial entre homens e mulheres continua a ser um conceito futurista. Os discursos de ódio correm livres nas redes, nas televisões, nos plenários. Mas atenção: desde que não nos cortem o acesso ao streaming, por mim está tudo certo. E porquê? Porque com as dores dos outros posso eu bem.

E é precisamente aqui que mora o perigo. Cada pequena fissura no edifício dos direitos humanos parece, à primeira vista, apenas isso: uma racha inofensiva. Mas as fissuras acumulam-se. E um dia, sem aviso, tudo desaba. Mas como não foi hoje, nem foi comigo… posso eu bem, não é?

Temos de dizer isto alto e bom som, com todas as letras: os direitos fundamentais estão a ser comidos às fatias, bem temperadinhos com indiferença e servidos à mesa da conveniência política. Não chegam com tanques nem com marchas militares. Chegam sorrateiros, embrulhados em decretos tecnicistas, discursos empolados e aquela nova, mas velha conhecida: a apatia geral. E sejamos honestos, não há arma mais eficaz do que o nosso próprio “não é nada comigo”. Nada como o quentinho do sofá e a ilusão confortável de que “isso nunca me vai calhar a mim”. Até calhar. E aí, meus amigos… aí já me dói a mim também!

Portanto, sim. Com as dores dos outros posso eu bem. Mas quando forem as minhas… espero, sinceramente, que ainda reste alguém do outro lado disposto a levantar a voz por mim.

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