Com muito bom gosto, a guitarra portuguesa de Marta Pereira da Costa recebeu mundo na Casa da Música
Quando falamos de guitarra portuguesa, o imaginário visualiza rostos e semblantes de homens, mas, talvez, a mais afamada intérprete da atualidade (até mais internacional que nacionalmente) é uma mulher. De seu nome Marta Pereira da Costa, é alguém que se destaca, acima de tudo, pelas colaborações que tem feito, ao lado de nomes como os fadistas Camané, Carlos do Carmo, Mariza, Rodrigo Costa Félix (favor escutar “Fados de amor”, de 2013), o também guitarrista António Chainho, Mayra Andrade, Toquinho, Rui Veloso e até a banda de música tradicional Retimbrar. Esta polivalência é sinónimo do próprio (e único) álbum da sua autoria “Marta Pereira da Costa”, editado em 2016. A sua recente presença na série de concertos Tiny Desk promovida pelo canal NPR, dos Estados Unidos, mostra a sua crescente internacionalização, por força desse tal disco que despertou tanto interesse de fora como de dentro.
Com quatro décadas de vida contadas, Marta Pereira da Costa – para a conhecer melhor, ler a entrevista que lhe fizemos ainda este mês – chegou a um estatuto de reconhecimento por força de uma conjugação de influências, que traz o choro brasileiro ou a morna cabo-verdiana para as potencialidades da guitarra portuguesa. Aliás, daí a sua presença no conhecido festival South by Southwest, em 2019, no estado do Texas, enquadrada numa tournée feita no país. Engenheira de formação e até de investigação, também dentro de portas foi galardoada, nomeadamente com o Prémio Instrumentista em 2014, concedido pela Fundação Amália Rodrigues. Guitarra que havia aprendido desde os oito anos de idade, embora a portuguesa só tenha chegado aos dezoito. Mal a conheceu, foi com ela que decidiu percorrer o mundo, tendo, para lá dos já referidos Estados Unidos, visitado Senegal, Peru, Tunísia, Canadá, Brasil, Eslovénia, entre outros países.
Para o presente ano, Pereira da Costa traz o projeto que gravou no ano passado, “Sem Palavras”, no qual procurou aliar o jazz trazido pelo piano, aos acordes da guitarra portuguesa. O single de apresentação do álbum, “Dia de Feira”, denunciou que a sua gravação foi feita com o cubano Iván Mélon Lewis, vencedor de um Grammy Latino em 2021. Gravado em Madrid sob a chancela da Cezanne Producciones, a semântica musical latina flui entre os convites feitos pelos músicos para um misto de fado e jazz, mas também de salsa, rumba e até a erudita mais convencional, mostrando que são muitas as semelhanças e nem tanto assim as diferenças entre estas identidades. Sempre com uma toada muito leve, subtil e delicada, por mais que o repertório fosse relativamente puxado – presença de temas, como os “Verdes Anos”, “Um Homem na Cidade” (do fado) “Summertime” (do jazz), “Aranjuez”, “Veinte Años” ou “Tom Waits” (lembrar o tema de António Pinho Vargas). Todos estes acabam por revisitar o extenso cancioneiro latino, do lusófono ao hispanófono, e do jazz do qual ambos comungam. Isto do pouco que conseguimos ouvir, dado que o álbum só conheceu o público na véspera do concerto, algo que lamentamos.
No Porto, já havia atuado por várias ocasiões, em especial, na celebração do São João de 2019, em palco montado em plena baixa citadina. Neste caso, apresentou-se em nome próprio na Casa da Música, num ambiente híbrido, que deambula entre as habituais salas de concerto em que costuma atuar e os eventos oficiais de cariz diplomático, em que representa Portugal. Neste regresso aos grandes palcos portugueses, Pereira da Costa subiu ao palco com Mélon Lewis e com mais uma data de artistas, não somente músicos, para essa apresentação de “Sem Palavras”. Com a imagem, nomeadamente o xaile em forma de vestido, a cargo da estilista Constança Entrudo e com a presença do coreógrafo espanhol de ballet e de dança Enrique Perez-Cancio Cantero, fomos contemplados com um espetáculo enriquecido pelos deslumbrantes bailarinos da Companhia de Ballet Clássico de Leiria, provenientes do Conservatório Internacional de Dança Annarella Sanchez.
A lisboeta chegou, de início, a solo, interpretando um breve tema de fado para a plateia quase cheia de gente com uma indumentária devidamente aprumada para o concerto. Mesmo que muitos tenham chegado já para lá do início do concerto, ainda vieram a tempo de vê-la ao lado de Melon Lewis, a quem chamou, quando o apresentou, de génio e de um talento imenso que melhor corporiza o seu segundo instrumento de estima. Melon falou em espanhol e todos o entenderam, mas ainda melhor o entenderam quando o escutaram ao lado de Pereira da Costa. Foi uma musicalidade verdadeiramente retumbante e forte, munida de um bom gosto ao alcance de quem faz da música uma arte fina e trabalhada. Para quem a perdeu, nota para a gravação por parte da RTP deste concerto.
Foi assim que escutámos com alegria às interpretações das “Memórias” – um tema dedicado à avó da guitarrista -, das “Sem Palavras” – este para os filhos -, “Dia de Feira” – que foi repetido no fim e que o público adorou -, “Verdes Anos e Summertime” – o primeiro dos cinco temas que contou com os dançarinos em palco – ou “Aranjuez & Spain” – apresentado por Mélon Lewis como um reconhecimento da unidade e da grandiosidade da música, com base nos latinos Joaquin Rodrigo e Chick Corea. Não podemos deixar passar, de igual forma, o gosto que foi ouvir “Um Homem Na Cidade”, composta por José Luís Tinoco, ou o tema pandémico “Primeiro Passo”, já que foi composto por Pereira da Costa ao lado do piano de Alexandre Diniz, numa fase em que fez duetos com os membros do seu quinteto. “Tom Waits” e o derradeiro “Além-Terra”, que homenageia a mentoria de Mário Pacheco, abrem caminho a que não se esqueçam, do seu álbum de 2016, as visitas às músicas “Terra”, “Movimento” e “Minha Alma”.
Naquilo que se prende meramente com a execução, foi, de facto, uma prestação diferenciada e com uma musicalidade elegante e briosa. A missão de Marta Pereira da Costa é assumidamente a de abrir o mundo para a guitarra portuguesa, ao mesmo tempo que integra a guitarra portuguesa no mundo. Ora, com o sucesso que os seus constantes périplos granjeiam no seu percurso profissional, é certo que a missão está a ser cumprida. Nesta noite portuguesa, mesmo com um público que tinha o seu quê de poliglota, aclamou-se com vivacidade a personalidade musical de Pereira da Costa, que deslumbrou com a capacidade percussiva e até imaginativa que mostrou com as cordas. E se havia ceticismo em relação ao piano ao lado da guitarra portuguesa, eis senão quando Mélon Lewis exibiu a tal química da qual falou quando nos falou dos porquês de ter aceitado o convite de Pereira da Costa para gravar um disco. “Veinte Anos”, um tema tão latino e, especialmente, cubano, é um exemplo da sintonia de um pianista tão rítmico e virtuoso com uma guitarra portuguesa tão vivaz.
O piano pode e deve ser fomentado ao lado da guitarra portuguesa, ajudando-a a encontrar outros espaços, outros ambientes fora do fado. Mesmo que seja inigualável escutar a guitarra com as tonalidades do fado – que o digam os momentos a solo de Pereira da Costa, que deram para arrepiar -, é notável ver até onde este instrumento pode ir. Talvez seja uma questão de hábito ou do ser (a)normal, mas a noite memorável que a portuguesa tanto queria concretizar pode ser um dos pontos de partida para que esse caminho seja feito. Nota para a prestação graciosa dos bailarinos que subiram ao palco da Sala Suggia, fazendo mais uma ponte entre o bailado e a dança e a música tida como mais popular e a quem Pereira da Costa agradeceu vivamente. Agradeceu, também, à presença dos pais e dos filhos, dos amigos e demais lisboetas que subiram ao norte, à costureira, ao coreógrafo, a quem lhe “cuida das mãos”, à produção, aos membros da promotora e a todos aqueles que a assistiram em palco.
Foi, visivelmente, uma noite emocionante e emotiva para Marta Pereira da Costa, que, por mais que percorra o mundo, tem as suas raízes bem assentes em solo português. O gosto com que apresentou o seu novo disco – algo que se estende a todos os envolvidos, onde se inclui Ivan Mélon Lewis – mostra aquilo que significou, por mais que o talento que possui seja enorme e que torne tudo mais fácil. A ansiedade que sentiu, depois de tantos meses de preparação desta noite, acabou por ser transmutada em gratidão e em plenitude. A música, de facto, é só uma, unida e íntegra, na qual tudo tem lugar. O lugar da guitarra portuguesa vai transcendendo o fado e fazendo deste um lugar de pluralidade e de encontro(s) com outras realidades. É desta maneira que o fado tem crescido em inúmeras formas para inúmeras direções, com ou “Sem Palavras”. Com muito bom gosto, que está longe de ferir os mais conservadores, Marta Pereira da Costa trouxe mais mundo para a sua guitarra portuguesa e fá-lo-á bem para lá da Casa da Música.