Começa hoje o Semibreve em Braga. Uma retrospectiva e o que ver em quatro dias do festival
Inicia-se hoje o Festival Semibreve em Braga, que decorrerá até ao próximo domingo. Com a habitual produção da AUAUFEIOMAU, é um dos eventos de referência no âmbito da música electrónica e das media arts, e conta, uma vez mais, com um cartaz de excelência. Os ingressos já esgotaram (devem mesmo comprar com antecedência!), e já se constrói a expectativa para um fim-de-semana memorável.
Será a sua 11ª edição, tendo a primeira ocorrido no ano de 2011. Então, Alva Noto visitava a cidade, assim como Fennesz e o histórico Hans-Joachim Roedelius, entre muitos outros, e Braga — o país! — recebia um festival sem quaisquer precedentes. Não estávamos lá, mas há histórias: socorremo-nos de artigos da altura (artigos com mais de dez anos! Viva a internet!) e descobrimos, via palavras de Robin Murray na Clash, que ainda antes de se iniciar o festival, foram todos (imprensa e artistas?) para um mosteiro nas redondezas da cidade (imaginamos ser o Mosteiro de Tibães, que frequentemente dialoga com o Semibreve), onde se lhes serviu o jantar um conjunto de freiras (?!) e após o qual se reuniram, quase como uma corte ou arriscamos até uma seita, para discutir algumas grandes questões.
A fazer fé nas palavras de Robin — confesso que a parte do jantar me deixa de pé atrás —, a pergunta preliminar foi a seguinte: deverá a música fazer-se acompanhar da imagem? Há outros relatos, como este da Drowned in Sound, que referem reacções de Roedelius; qualquer que tenha sido a sua opinião, a verdade é que actuou, de facto, com acompanhamento visual. Mas a questão não é de agora — factualmente, a questão tem mais de dez anos — e demonstra que é um debate sempre presente no Semibreve, que costuma casar a música experimental ao vivo com a arte visual, e frequentemente mediante pedido expresso do festival, que proporciona a curadoria e encontros entre certos artistas em particular.
Essa não é a única questão levantada pelos transformadores fins-de-semana minhotos. Há mais coisas curiosas nesses artigos, que nos lembram 2011 e o país vergado pela crise, sem perspectivas de um futuro risonho ou sequer convincente: e de alguma forma, houve quem tenha decidido organizar um festival que colocaria em Braga, cidade tradicionalmente conservadora e sem corrente ou sofreguidão artística que se lhe possa unanimemente reconhecer, um conjunto de artistas que em si carregam expressões da vanguarda e da experimentação electrónica. Como pôde isto ter tido sucesso, e mais ainda sobrevivido?, esta é uma que é oferecida por nós e à qual alguém ainda há-de responder, mas a verdade é que há muito público a vir de outros países e culturas, atraídos pela qualidade e singularidade da proposta. O que entre nós é esquisito, para outros é gourmet.
Passaram-se mais de dez anos e, aos dias de hoje, o Semibreve está diferente, mas ainda muito igual. O passar do tempo acrescentou-lhe outras valências, como a natural extensão para o campo das media arts (onde Braga é agora também uma referência, tendo formação superior em colaboração com a Universidade do Minho), e atenção sobre outras formas de expressão artística, que se revela nas instalações que recebem durante o festival: é obrigatório reservar algum tempo para visitar as obras que ocupam o Theatro Circo e o gnration entre as quais se destaca a vencedora do habitual EDIGMA Semibreve Award, prémio estabelecido em 2016. E há outras actividades, como workshops e conversas abertas ao público, e ainda um notável e entusiasmante prolongamento do festival para a zona aural do clubbing; mas nada, entretanto, se perdeu: todas as escolhas são consistentes com uma visão de descoberta e desejo de futurismo, de ouvido aguçado para os caminhos pouco trilhados da (outra) música moderna.
O primeiro dia conta, agora, com um espectáculo no Santuário do Bom Jesus do Monte, um espaço privilegiado e a partir do qual se vê toda a cidade; só na sexta-feira voltaremos à Sala Principal do Theatro Circo, icónica e mais que centenária, que se transforma sucessivamente mediante a intervenção dos artistas que por lá têm passado (e assim de repente recordamo-nos de Deathprod e, na edição de 2021, os seus indescritíveis Supersilent, mas também Oren Ambarchi, Keith Fullerton Whitman, ou aquela vez em que Drew McDowall + Florence To provocaram um assalto sensorial de tal ordem que nos transportaram, brevemente, para outros estados da consciência). Este ano há altíssimas expectativas para voltar a receber Alva Noto, artista alemão que muitos associarão à parceria com Ryuichi Sakamoto, e ainda o retorno ao festival — e a consagração! — de Caterina Barbieri, depois de uma apoteótica performance no Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho, em 2018. Claro está, também nos rendemos às oportunidades de surpresa, como imaginamos que será o concerto de Maxwell Sterling, com visuais de Stephen McLaughlin, ou David Maranha (habitualmente associado aos Osso Exótico) no Pequeno Auditório do Theatro Circo.
Durante pouco mais que um fim-de-semana, Braga torna-se num epicentro de experimentação e modernidade; ouvem-se, vêem-se e sentem-se coisas inéditas e vanguardistas e que nos deixam uma amarga, apesar de esperançosa, sensação de que existe bem mais além do que consideramos ser o limite da arte ou cultura contemporâneas. À boleia de um outro registo desse ano de 2011, recuperamos as palavras de André Gomes para a Bodyspace: “não se poderia imaginar nenhum sítio melhor para se estar depois de escapar ao mau tempo a caminho de Braga” (tragam guarda-chuvas e roupa impermeável). O Semibreve é um maravilhoso trabalho de curadoria e de amor à causa. Que se parabenize quem há a parabenizar, e que nada lhes falte: queremos o Semibreve por muitos anos mais.