Começar a casa pelo telhado 

por Cláudia Lucas Chéu,    12 Dezembro, 2024
Começar a casa pelo telhado 
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Nunca te pedi que começássemos a casa pelo telhado. Sei que o mais importante são as fundações, e quanto mais fundo for o poço de aço, mais forte será a fachada da nossa casa. E uma casa também pode ser o abrir de braços perante os olhos derrotados da tua mulher, que transporta há meses uma ausência que ocupa muito espaço. Uma ausência que ocupa muito espaço. Lembras-te daquele ano em que ela se vestiu de Pai Natal para animar os miúdos crédulos e inquietos de roda da árvore, os miúdos que ainda nem nos chegavam à cintura? Quando ainda eram uns fedelhos ranhosos de Dezembro, a pedir açúcar e a limpar o nariz às mangas do pijama de flanela. Lembras-te que ela pôs uma almofada dentro do casaco vermelho puído da loja do chinês comprado anos antes, zás, umas barbas que mais pareciam plástico que algodão, tau, um gorro e uns óculos 3D, era o que estava à mão para esconder os faróis azuis inconfundíveis, e plim, surgiu radiante no meio da sala com a boca indecisa entre um oh, oh, oh! e uma fatia parida? Nunca recusava o desafio de um amigo, alinhava em tudo, sempre cumpriu com gosto a promessa da amizade. 

É o primeiro Natal onde a saudade aleija a valer. Por isso é que te falei da nossa casa, das fundações, do abraço e da derrota, que é tudo material da mesma construção. Este Natal preciso de ser piegas, de me ir abaixo, de ter uma rede para sair da cama e conseguir pôr os pés no chão, como uma trapezista a quem lhe roubaram a altura e a tenda, menos a vertigem. Nunca te pedi que começássemos a casa pelo telhado, foi assim que calhou, mas já temos a mobília, as plantas e até o gato. Logo se vê como pomos a tampa ao tacho do nosso lar. Limpei a casa e fiz arroz de feijão para ti, sei como te dá conforto. Que pena não termos telhado, é que isto assim vai arrefecer tudo num instante e fica sem graça nenhuma. Não tarda chove. Vem. Vem para ficares todos os dias até nos transformarmos noutra coisa, e noutra, e noutra. Vamos estar sempre a mudar, eu e tu somos farinha do mesmo saco, «birds of a feather», como diz a Billie. Gosto mais da Holiday, embora ela nunca passe na rádio, talvez na Antena 2, mas tu só ouves o Spotify, meu amor. Estou a ficar mais velha do que tu a cada ano. O jantar arrefece, eu arrefeço, amor. É Natal. Estou aqui. A tua mulher. Ainda podemos construir o telhado. 

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