Como tu, Mutlu

por Leonardo Cruz,    31 Dezembro, 2022
Como tu, Mutlu
Ilustração de Natacha Costa Pereira
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“Na Turquia, um homem embriagado dado como desaparecido participou nas buscas por ele próprio”. A notícia é cómica o bastante para captar a atenção. Porém, noto-lhe uma espécie de existencialismo que me atrai. Pouco interessa se é de 2021: alguma vez alguém rejeitou a alegoria de Édipo-Rei por estar “datada”? 

Se, no mito de Édipo, a moral aparenta ser a de que “ninguém escapa ao seu destino”, no caso do bêbado turco podemos descortinar uma parábola à constante procura por aquilo que se é. A eterna busca pelo que os gregos chamam de autógnosis ou, se preferirem, um louvor à “sede de autoconhecimento”. Que o homem tinha sede, ninguém duvida.

“Bayhan Mutlu, de 50 anos, foi dado como desaparecido por amigos numa vila perto da cidade de Inegöl, na Turquia, depois de ter ficado embriagado nos bosques e nunca mais ter regressado para junto do grupo” — relatou o Correio da Manhã. O nome da cidade talvez só tenha aumentado a excitação. Um bairrista inseguro, como eu, imagina logo o grupo de amigos de Bayhan, munido de copos de vinho, a bradar aos céus a plenos pulmões: “quem não engole, não é de Inegöl!” (sim, bem sei que a piada é fácil, mas se o homem fosse originário de Malta, por exemplo, não seria tão criativa — aquilo ali é rima rica, caríssimos: verbo com nome).

Segundo o Expresso, o homem “estava a beber juntamente com os amigos (…) quando, já embriagado, se afastou do grupo, entrou numa floresta e não voltou a ser visto.” Foi Jack London, escritor americano, quem celebrizou a expressão idiomática que aqui se poderia aplicar: “O Apelo da Selva”, título do seu romance no qual um pachorrento cão se transforma no feroz líder de uma alcateia. A história de Bayhan Mutlu podia ser escrita também por F. Scott Fitzgerald, ao estilo de “O Estranho Caso de Benjamin Button”, isto é, “de trás para a frente”, mas inspirado pelo famoso Tarzan. Ou seja, um homem que nasce numa sociedade dita civilizada e, a certa altura da vida, decide viver com animais (e agora recordei os meus tempos de faculdade). Mais recentemente, o filme “Into the Wild — O Lado Selvagem” (realizado por Sean Penn com base no livro de Jon Krakauer) imortaliza a caminhada de Christopher McCandless, um jovem que abandona todos os seus bens, almejando uma existência despojada, no meio da natureza agreste do Alasca. Na minha modesta opinião, não é por Bayhan Mutlu estar com um copo a mais que é menos heróico ao decidir-se pela completa e abrupta rescisão com uma sociedade capitalista e opressora. Não é um grão na asa que impede um homem de querer voar.

O ébrio turco poderia ser personagem de Salinger — numa viagem frenética em direção ao bosque, durante a qual se ia conhecendo a si próprio, ao mesmo tempo que o leitor. Imagino-o nostálgico, num bar com as paredes decoradas com imagens de campos de centeio, tentando apanhar todos os copos do balcão: “The Catcher in the Rye Bar”, algo como “O Apanhador no ‘Campo de Centeio Bar’”, para utilizar a menos má tradução brasileira do título da clássica história de Holden Caulfield.

A reportagem do Expresso continua:

Depois de a mulher e os amigos terem alertado as autoridades, foi dado como desaparecido e rapidamente começou a ser procurado no local. Acidentalmente, acabou por se cruzar com uma das equipas que realizava buscas por ele próprio e voluntariou-se para ajudar, sem saber no entanto quem é que o grupo tentava localizar”.

Há aqui desorientação e excesso, mas também há voluntarismo e espírito altruísta. Mutlu é, ao mesmo tempo, perseguido e perseguidor: Rodion Raskolnikov e Porfiri Pietróvitch, Jerry e Tom, Átila e Duarte. Uma mistura de “O Fugitivo” com “Clube de Combate”. 

Denoto ainda potencial para Mitologia Brega — porque não um novo Templo de Mutlu (em vez de Apolo), trocando a Grécia pela Turquia, Delfos por Inegöl, e a frase “conhece-te a ti mesmo” por “procura-te se estás perdido”?

“O mistério só foi desvendado quando a equipa começou a chamar pelo nome do desaparecido e o próprio respondeu ‘estou aqui’. Confuso, ainda perguntou: ‘Mas, afinal, nós estamos à procura de quem?’.”

Eis a pergunta número um do processo de autoconhecimento e a sua proposição lógica: “Quem sou eu?, logo: procuro-me, logo: quem procuro?”. E por falar nas grandes questões da humanidade: quantas se colocam, em simultâneo e com mesma ânsia por respostas, na mente de um bêbado e na de um filósofo? — eis um possível estudo com pernas para andar (eventualmente aos ziguezagues). 

“No momento de se explicar às autoridades, o homem de 50 anos pediu aos agentes ‘não me castiguem severamente, o meu pai vai matar-me’.” 

Et voilà, a famigerada tensão entre pai e filho: aqui estamos nós, de volta a Édipo. Que eu fique ceguinho, se isto foi premeditado. 

A incrível fábula de Bayhan Mutlu encerra, sobretudo, um ensinamento: sê a pessoa que procuras.

Pelo sim, pelo não, se acaso nesta passagem de ano me perder, só espero ter a abnegação deste homem e contar comigo para participar nas buscas. Como tu, Mutlu. Um brinde!

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