Comunidade ucraniana em Portugal assinala Holodomor com os olhos na invasão russa
A comunidade ucraniana em Portugal assinala este sábado os 90 anos do Holodomor, encontrando paralelos entre as campanhas de fome de Estaline, que no século passado dizimaram milhões de pessoas, com a atual invasão russa orquestrada pelo Kremlin.
Tradicionalmente, o Holodomor é assinalado todos os anos no último fim de semana de novembro na Ucrânia e pela sua diáspora e, em Portugal, segundo o presidente da comunidade ucraniana, Pavlo Sadokha, as cerimónias realizam-se desde 2008, sendo cada pessoa convidada a acender uma vela em memória de todos os milhões de ucranianos que morreram de fome.
Em Lisboa, segundo um comunicado da organização, a homenagem às vítimas inicia-se às 18:30 na Praça de Itália, de onde parte um cortejo em marcha lenta para o Mosteiro dos Jerónimos, onde será celebrada uma oração conjunta do patriarca de Lisboa, Rui Valério, e do bispo da Igreja Católica do Rito Bizantino da Ucrânia, Stepan Sus, com a presença da embaixadora ucraniana em Portugal, Maryna Mykhaylenko, enquanto no Porto a data será assinalada a partir das 16:00 no Palácio de Cristal.
Além do apoio expressado por Portugal a Kiev desde o primeiro momento, após a invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, a comunidade ucraniana está também “muito grata” por Portugal pertencer desde 2017 ao grupo de países que reconheceu na Assembleia da República o Holodomor como genocídio, o que aconteceu também no Parlamento Europeu no ano passado.
A efeméride ganhou outra expressão desde a “intervenção militar especial” na Ucrânia, determinada pelo líder do Kremlin (Presidência russa), Vladimir Putin, e a guerra fratricida que se trava desde então, tornando ainda mais importante, de acordo com Pavlo Sadokha, explicar as origens da tragédia dos anos 1930 e as suas implicações para o conflito atual.
O líder da comunidade ucraniana defende que “o cenário é agora muito parecido”, sendo até mais fácil apenas apontar o que há de diferente entre os dois acontecimentos separados por 90 anos.
“E o que é diferente é a cor da bandeira do império russo. Há 90 anos era a vermelha do Partido Comunista, na realidade era o império russo, e agora são as três cores da Federação Russa, mas a ideologia é a mesma, de controlar os povos e continuar a expansão do seu poder nos territórios além da Ucrânia e ter um império que manda na Europa”, observa Pavlo Sadokha.
Historicamente, prossegue, o povo ucraniano “sempre impediu a expansão do império russo, porque sempre quis a sua liberdade, e sempre lutou pela sua independência e democracia”, algo que Estaline percebeu há 90 anos e “por isso fez o Holodomor”.
Na atualidade, e quando passam dez anos sobre a revolta em Kiev do Euromaidan e a Revolução da Dignidade, que expulsou o Presidente ucraniano pró-russo Viktor Ianukovitch, o líder do Kremlin usa o argumento da desnazificação da Ucrânia para invadir o país independente desde 1991.
Sadokha comenta que “não se percebe bem o que Putin quer dizer com ‘desnazificar’”, mas os ucranianos, reforça, sabem muito bem o seu potencial alcance: “Significa que ucranianos desapareçam como povo e como nação”.
O Holodomor, ou morte por fome, entre 1932 e 1933, é considerado uma das maiores campanhas de extermínio do século XX, frequentemente comparado ao Holocausto, quando o regime soviético de Josef Estaline executou um plano de retaliação aos camponeses ucranianos que recusavam a coletivização de terras e aos quais foram impostas quotas de produtividade, sob pena de ficarem sem comida, ou até sanções a regiões inteiras.
O objetivo era eliminar qualquer resistência, sobretudo nos ‘kulaks’, terras de proprietários agrícolas ou de gado, e também reprimir qualquer tentação de nacionalismo ucraniano, ambos perseguidos pela polícia política, que prendia, fuzilava ou enviava para ‘gulags’ as pessoas suspeitas.
“Estaline conhecia a fome que o país sofria no início dos anos 1930. No entanto, tomou a determinação premeditada em 1932 de endurecer as condições na Ucrânia, incluindo quintas coletivas e aldeias nas suas listas negras, bloqueando as fronteiras do país para que as pessoas não pudessem sair e criando brigadas que iam de casa a casa confiscar a comida dos camponeses”, afirmou, em entrevista ao diário espanhol El Mundo Anne Applebaum, escritora e jornalista norte-americana naturalizada polaca, autora de “Fome Vermelha”, uma das obras de referência sobre o Holodomor e editada em Portugal.
Esta não foi, portanto, uma fome provocada por circunstâncias meteorológicas ou por um desastre natural, mas que seguiu um padrão completamente diferente na Ucrânia, por comparação a outros territórios da antiga União Soviética, como a própria Rússia ou o Cazaquistão – também atingidos -, o que explica, segundo a autora e Prémio Pulitzer, a “repugnante mortalidade” planificada, uma vez que, do número mais aceite de quase cinco milhões de mortos estimados, pelo menos cerca de 3,9 milhões foram vítimas ucranianas, na maioria crianças malnutridas, embora outras fontes coloquem estes valores num patamar bastante superior.
Os relatos de numerosas fontes citadas pelos historiadores descrevem pessoas em total desespero, famintas e privadas dos seus lares por decretos implacáveis do ditador soviético Josef Estaline, e forçadas a comer ervas daninhas, troncos de árvores, ratos e, no final, os seus animais de estimação até chegarem ao ponto do canibalismo e de necrofagia e de se alimentarem dos seus próprios familiares.
“Foi um dos maiores e mais devastadores acontecimentos da história moderna”, afirmou perante o Congresso norte-americano o historiador britânico Robert Conquest, autor de “Harvest of Sorrow” (“Colheita da Tristeza”, 1986) e um dos primeiros a estudar de forma sistemática o Holodomor, no final dos regimes comunistas na Europa de Leste, o que permitiu desvendar parte de uma tragédia silenciada por Moscovo durante meio século.
Os cadáveres amontoavam-se nas casas, mas também eram visíveis nas ruas e nos passeios, e noutros lugares públicos como estações de comboio. As pessoas que recolhiam os corpos sem vida sabiam onde procurar quando viam corvos nas proximidades e, por vezes, os moribundos eram carregados juntamente com os mortos.
Após um pico na primavera de 1933, as autoridades soviéticas começaram a perceber que as medidas eram contraproducentes e que faltava mão-de-obra para trabalhar os campos, abrandando a repressão brutal e iniciando a suspensão de quotas de produção, o fornecimento de pacotes de ajuda que incluía os próprios bens que tinham sido confiscados e a deslocação de trabalhadores para repor os que tinham desaparecido.
À campanha de extermínio seguiu-se a campanha de encobrimento. As autoridades ordenaram que as certidões de óbito fossem falsificadas, os registos foram destruídos e os resultados do censo de 1937 na União Soviética foram ocultados e o diretor do departamento de estatística acabou fuzilado. Os detalhes eram sombrios: a contagem da população ficou oito milhões abaixo das projeções do Governo.
Para Anne Applebaum, conhecer as causas da fome na Ucrânia ajuda a explicar a Ucrânia de hoje e “por que a Rússia continua a ver uma Ucrânia independente e soberana como uma ameaça”, na qual Putin “teme que os russos possam ser contagiados por movimentos ucranianos como os que ocorreram na Praça Maidan”.
Na perspetiva ucraniana, acontece o inverso, e segundo a jornalista e autora, “a fome é uma das coisas que estão na cabeça dos ucranianos que estão agora a lutar no terreno”.