“Confiança”, de Hernán Díaz: Prémio Pulitzer para um discurso perfeito. E isso pode ser um problema

por Mário Rufino,    8 Maio, 2023
“Confiança”, de Hernán Díaz: Prémio Pulitzer para um discurso perfeito. E isso pode ser um problema
“Confiança”, de Hernán Díaz (capa do livro)
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A realidade abre as portas de par em par quando utiliza a chave ficcional. 

A elasticidade utilizada por quem diz a verdade através da ficção dá ao leitor acesso a interpretações até aí vedadas. 
“Confiança” (Livros do Brasil; trad. Francisco Agarez), de Hernán Díaz (Argentina; 1973), é essa realidade habitada por agentes inventados, por pessoas que existem no papel, mas que expõem os meandros de uma época marcada pela História. 
“Confiança” aproveita uma família ou personagens para construir um cavalo de Troia para fazer de ensaio, miscigenando géneros. Neste caso, para pensar nos vários “crashes” da bolsa nova-iorquina dos anos 20 (e anteriores, através da história da família). 

Nesse aspecto, o romance do escritor argentino radicado nos Estados Unidos da América segue a ambição do “great american novel”, pois almeja abranger um espaço temporal lato através da ligação entre várias gerações com acontecimentos históricos que marcam uma ou várias épocas. 

Estamos em Nova Iorque dos anos 20. Benjamin Rask concentra a atenção dos “keyplayers” da comunicação social e dos idólatras do capitalismo. 
Helen Rask, sua esposa, é conhecida pelo dinamismo no meio cultural nova-iorquino, através da organização de concertos e financiamento de movimentos culturais. 

São o casal charneira do romance “Obrigações”, ficção dentro da ficção, lido e comentado amplamente. Será a recriação de pessoas “verdadeiras” que colocará em contraste o trabalho ficcional com a realidade, a imagem criada por palavras versus os reais actos dessas pessoas. Metaficção nas mãos do autor argentino para confrontar-se e ao leitor com o poder e as limitações da criação ficcional, que nunca é total. 

“Confiança” é um romance em quatro partes sobre um tubarão da bolsa, Andrew Bevel, e sua mulher, Mildred. Na primeira parte, temos “Obrigações”, de um tal de Harold Vanner, que ficciona a vida de Andrew e Mildred (no livro de Vanner chamados de Benjamin e Helen). A segunda parte é constituída pela autobiografia de Andrew Bevel, “A Minha Vida”; a terceira parte, “Memórias Relembradas”, consiste num resgate ao esquecimento de vários aspectos de Bevel e Mildred, por Ilda Partenza; finalmente, “Futuros”, o discurso possível de resgatar da caligrafia críptica de Mildred Bevel. 

Hernán Díaz é competente. A diacronia do romance analisa os “crashes” da bolsa de valores na primeira metade do século XX americano. Os diversos registos narrativos e as diferentes vozes encaixam sem deixar arestas. É um edifício bem erigido, tudo acaba por fazer sentido, e a discrepância provocada por cada perspectiva e registo não deixa o leitor escorregar para o tédio. 
Aqui, o romance demonstra os seus méritos e esconde as suas fraquezas; Díaz demonstra a sua destreza estilística numa interrogação sobre a formação da perspectiva e do discurso na relação entre realidade e ficção. E nessa relação entre facto real e imaginado, está também a interrogação sobre o poder do dinheiro, sobre a sua criação e até a sua ficção. O dinheiro é algo abstracto, algo criado pelo homem, que pode ser trocado por algo tangível ou ser uma etérea construção de progresso, fé e segurança. 

É na capacidade de criar empatia que a obra fica aquém. Não sentimos nada. Não há repulsa ou simpatia, projecção ou afastamento. O leitor sai como entra: sem ranger os dentes, sem necessidade de sacudir o pó nem amansar as feridas. Sai sem cicatrizes. 
“Confiança”, vencedor do Prémio Pulitzer 2022, é confortável. Pode ser uma qualidade ou defeito. Depende do leitor. 

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