Confissões de um novo lamechas
Há cerca de dezassete anos houve em Portugal o aparecimento de um novo meio de comunicação: o blogue. De repente discutiam-se ideias – por oposição a “comentá-las” em caixas -, trocavam-se cromos musicais e literários, escreviam-se crónicas, relatavam-se acontecimentos. Do combate político ao género diarístico havia um pouco de tudo.
A tentação de escrever num meio que era absolutamente livre e apenas limitado pelo bom senso e bom gosto dos que o utilizavam foi também irresistível para mim. E assim, durante vários anos, mantive um blogue onde, com frequência irregular, depositava as minhas muitas idiossincrasias e conhecia a generosidade de outros.
Antes que o amigo leitor aproveite a nova era desconfinada para fugir do que parece ser um exercício de vaidade, eu explico o prólogo: nesse blogue criei um alter ego, uma personagem que interrompia furiosamente o autor – eu – para criticá-lo e impor a sua mundividência. Era o “Professor Lamechas”.
O professor Lamechas revoltava-se contra o pretenso cinismo e os aforismos blasé que eu ostentava. E aproveitava para defender o seu mundo vulnerável, cor de rosa e em constante demanda por lenços de papel. As suas intervenções terminavam geralmente com exemplos musicais do que o “bom gosto” considerava grandes xaropadas: baladas pirosas de lágrima em riste, bandas com penteados duvidosos etc.
Ou seja: o professor Lamechas servia-me para apresentar o que se chama de “prazeres culpados” de forma mais protegida. E eis então a razão porque o invoco para aqui: porque o professor Lamechas parece ter finalmente conquistado o mundo.
Isso, amigos. Ser lamechas já não é visto como uma falha de caracter derivado aos dias de porcelana que atravessámos e que em muito serviram e servem para expor fragilidades e revelar sem medo coisas que estavam mais ou menos a coberto da luz dos outros. Emoções, por exemplo. Veja-se, como exemplo maior e brilhante, os directos de Como o Bicho Mexe, idealizados por Bruno Nogueira e transmitidos no Instagram. O último episódio, como já deverão saber, teve 175 mil espectadores e enorme interacção. O próprio não escondeu a sua comoção e realmente foi comovente ver, entre risos e choros, a disponibilidade de todos a troco de quase nada.
Os sinais estão por todo o lado: ainda há dias um grupo de amigos em que me incluo ressuscitou canções de amor mais ou menos pirosas sem receio de perder a noção de esclarecimento musical. A razão única: porque nos comoviam, quase à beira das lágrimas. Agora, com o distanciamento, vejo como sempre vi os elementos sacarinos em profusão. Mas aos primeiros acordes de I’m all out of love, dos infames Air Supply, desmorono como um castelo de cartas.
A verdade é que sempre fomos uns sentimentalões, com maiores ou menores defesas. Lembro-me da famosa frase de Orson Welles sobre os finais felizes: “Se quiser um final feliz isso depende, claro, onde quiser terminar a sua história”. O regresso da lamechice, antes alternativa e agora tornada mainstream e tendência de moda, parece mostrar que toda a gente tem vontade de terminar a sua história num lugar bonito. E isso parece-me tão bom como surpreendente. Deixem estar assim, por favor.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.