Conforalma

por Henrique Pinto de Mesquita,    26 Janeiro, 2025
Conforalma

Devem ter-se esquecido de nós, os anjos. Nós, que nunca temos certezas; nós, que carregamos o espírito cheio de aftas; nós, que escolhemos sempre o prato que «pedimos desculpa, mas já não temos».

Talvez se tenham esquecido de nós, os anjos: a todos deram bússolas — sabem onde está Deus; encontram verdades nos livros; caminham com caminho —, a nós, uma escumadeira e um apito.

A todos deram talentos: ensinaram a rezar, a dançar, a amar. A nós, plantaram-nos catos nos pés, ataram-nos os cotovelos às orelhas e puseram-nos como tartarugas num canil.

(Agora safa-te, bicho.)

Foi de nós que se esqueceram, os anjos. Aí estão os outros: firmes, otimistas, gloriosos, com a boca a arrotar de certezas e restos de burrice a entrever-se-lhes nos dentes. Falam com a mesma propriedade com que corre um rio, vestem-se da mesma pertinência da mais antiga montanha.

«Pois sei eu que é assim, que o Sol me disse e a Lua já mo tinha dito também.»

Brilhantes na medida do possível, põem a bata professoral e garantem que aquele livro, que leram «até ao fim», lhes ensinou o que todos deveríamos saber para encontrar a verdade e o caminho. Quais sapos num lago de nenúfares, saltitam de verdade em verdade: todas elas firmes enquanto não afundam; todas elas para sempre enquanto duram.

Compram-nas como a lenha: às resmas e para tornar tudo mais «confortável». Conforama? Conforalma! Esqueça os sofás: agora as pessoas confortam-se com as suas verdadinhas-pequeno-burguesas, que dão miminhos à alma: pode escolher a astrologia, que é indiferente à sua classe económica; o catolicismo-por-medida, que lhe permite sexo antes do casamento e continuar amiguinho de Jesus; ou um tarot urbano-cool, cujas cartas definirão se Direito, se Gestão.

Conforalma! O mundo é fofinho e o amiguinho tem certezas. Introduza as suas certezas no mundo fofinho e viva feliz para sempre. E agradeça muito, muito, muito aos anjos, que não se esqueceram de si e fizeram-no gostar de Coldplay.

Para nós a canção é outra: somos as vassouras sem cabo, os cães sem patas, as vacas sem tetas. Tudo é árido e rugoso. Olhamos para as montanhas e escutamos o seu silêncio. Ouvimos o mar e engolimos as ondas. Lemos poemas, espreitamos por debaixo das estrelas, viajamos em barcos em forma de Lua. E no fim de tudo, nada: não há lá.

Mas voamos

As nossas arestas sempre picam,

Mas voamos

Do nosso coração sempre sai sangue, mas voamos. Somos máquina a vapor, geringonça-humana, manta-de-retalhos-com-pernas. Somos feitos de tudo. Produtos acabados da liberdade de brincar aos Homens. Filhos sem pais, peixes sem trela, cerejas sem bolo. Orgulhosamente incertos e felizmente incompletos. Fundamentalmente: livres. Eles até podem ser bafejados pelos anjos, mas nós fomos beijados pelos pássaros.

Sugestões do cronista:

O Primeira Pessoa do António Homem Cardoso, disponível na RTP Play, é um festim de inspiração para o jovem artista. Touro, flor e bom-malandro: o seu sucesso esteve na sua liberdade. Nas salas vi o solo da Luana do Bem, que andará pelo país mais uns tempos. Podia parar: já é a nova grande cara do humor em Portugal — quem se ri com a Luana não se ri dela, mas de si.

Na música, Bad Bunny já nos deu um dos álbuns de 2025: só quem gosta muito de música consegue fazer DeBÍ TiRAR MáS FOToS. Nos livros, David Grossman, jornalista judeu e israelita, socou-me com a violenta realidade que em 1987 se vivia no campo de refugiados palestinianos Dheisheh, ainda hoje ativo (O Vento Amarelo, Dom Quixote, 1989). À mesa, o nepalês Himchuli, em Lisboa, transformou beringelas em nuvens.

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