Consequências do fim da “Pax Americana”
Já muito foi dito e escrito na tentativa de prever o resultado das eleições americanas da próxima terça-feira, mas apesar de todas as análises de padrões eleitorais é impossível indicar um vencedor.
Quando combinamos a diversidade crescente de motivações políticas dos americanos com os empates técnicos nas sondagens de todos os estados ainda em jogo, a probabilidade de adivinhar o próximo Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) é a mesma de atirar uma moeda ao ar. Diz-se que todos os cidadãos do mundo deveriam poder votar nas eleições americanas, visto todos sermos afetados pelas escolhas de uns milhares de eleitores na Pensilvânia. Na tentativa de combater a ansiedade que enche o peito daqueles que prestam atenção aos processos eleitorais transatlânticos, procurei arriscar projetar as consequências para Portugal e para a Europa de cada um dos resultados, assim que estes forem confirmados pela inevitável batalha judicial e/ou campal que aguarda o ato eleitoral em si.
Comecemos pelo cenário de uma vitória de Harris, pela mera razão de o seu historial pessoal tornar mais previsível a sua política. No essencial, estará em causa uma continuidade das políticas de Biden e um reforço da ala progressista do Partido Democrata, para o bem e para o mal. A relação com a União Europeia (UE) continuará próxima, mas manterá a sua crescente rivalidade comercial, sendo inevitável o rumo protecionista das políticas americanas. O investimento dos EUA na Aliança Atlântica (NATO) continuará, assim como o apoio à Ucrânia contra o invasor Russo e a dificuldade em solucionar o pesadelo das guerras Israelitas no Médio Oriente. A derrota de Trump fortalecerá as forças pró-democráticas europeias, que verão na estratégia de Harris uma esperança contra a crescente ofensiva de extrema-direita que ameaça corroer a União por dentro. No que toca a Portugal, questões como a Base das Lages e a NATO irão manter viva a relevância que temos nas relações transatlânticas, desproporcional ao nosso peso militar e demográfico. Espera-se a manutenção dos programas da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), que poderão continuar a abrir portas à intervenção de muitos portugueses no ecossistema americano, e vice-versa. Acima de tudo, no que toca aos nossos interesses pessoais e egoístas, uma vitória de Harris garante alguma previsibilidade graças à manutenção do envolvimento americano nas alianças e estruturas internacionais, apesar da crescente perda de poder e influência dos EUA.
O cenário de uma vitória de Trump é consideravelmente diferente, e bastante mais difícil de desenhar devido à sua natureza errática. Um segundo mandato Trump irá cimentar a transformação do Partido Republicano numa reflexão do seu candidato, assegurando uns EUA mais isolacionistas e assumidamente nacionalistas. A guerra comercial e cultural que os apoiantes de Trump exigem terá como alvo a Europa para além da China, sacrificando soluções comuns para problemas climáticos e transfronteiriços. A NATO sofrerá desinvestimento ou dissolução, forçando a União a assegurar a sua própria defesa e encorajando Putin a manter a sua política de expansionismo violento. A espectável retirada dos EUA do multilateralismo enfraquecerá a ação humanitária e a relevância prática das Nações Unidas, validando e reforçando as forças nacionalistas e de extrema-direita no continente europeu. A anunciada carta-branca às ações Israelitas e a proximidade ideológica e pessoal de Trump a ditadores assegurarão o enfraquecimento da defesa dos direitos humanos a nível mundial, e a sua presença contínua no espectro mediático piorará o já dramático estado do discurso público e político, especialmente no campo digital. Já Portugal poderá esperar uma diminuição de presença e investimento americano, enfraquecendo a FLAD e a interculturalidade transatlântica. No geral, uma vitória de Trump encorajará os elementos antiliberais da política nacional, diminuindo pelo caminho a nossa capacidade de ação em múltiplas áreas. Do lado das democracias, apenas uma UE forte poderia encher o vazio deixado pelos EUA no espaço internacional, mas as dificuldades em assegurar posições comuns entre os Estados-Membros tornam difícil maior integração europeia, pelo menos a curto prazo.
Em ambos os cenários, o fim da hegemonia americana e uma mudança de foco para o Pacífico parecem inevitáveis. Com o fim da “Pax Americana”, os resultados destas eleições presidenciais irão essencialmente influenciar a urgência das respostas que deveremos engendrar. No final da contagem acordaremos para um mundo radicalmente pior, em que a verdade e a justiça perderam substancial relevância, ou um mundo essencialmente igual ao atual, com preocupantes desigualdades económicas, catástrofes climáticas e conflitos armados. As diferenças entre candidatos e as suas visões do mundo são inúmeras, e a polarização política veio para ficar. Espero sinceramente que uma vitória de Kamala Harris nos venha poupar ao choque frontal com o fim de uma era, criando a possibilidade de um futuro melhor… mas espero acima de tudo que estejamos prontos para quando o fim dessa era efetivamente chegar.