Constelações familiares

por Tiago Bartolomeu Costa,    27 Junho, 2025
Constelações familiares
“Viagem a Lisboa”, de Joana Cotrim e Rita Morais / Fotografia de Bruno Simão
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As famílias são trágicas, ridículas e, quando corre bem, canhestras na tentativa de demonstrar afeto nas situações mais complexas. Em suma, matéria teatral quanto baste para que o reflexo seja, ao mesmo tempo, cruel e espelho desviante que nos permite fugir à identificação. São, ainda, farsas tão ardilosas que convencem o mais incauto a arriscar constituir uma, e o teatro, quando a isso atento, volta o caos para as personagens, lembrando as armadilhas das narrativas funcionais e organizadas. Tudo aquilo que uma família não é. Mas, enquanto rimos da dos outros, escapa-se, e escapamos, à nossa. Dois espetáculos, que se cruzaram em Lisboa no início de Junho, falam da família, de quem as alimenta, e das constelações que, diz-se, é importante travar.

“Corre, bebé”, de Ary Zara e Gaya de Medeiros / Fotografia de Filipe Ferreira

Corre, bebé, de Ary Zara e Gaya de Medeiros, projeto vencedor da 8.ª Bolsa Amélia Rey Colaço, iniciativa do Teatro Nacional D. Maria II, conjuntamente com o Teatro Viriato (Viseu), Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo) e Centro Cultural Vila Flor (Guimarães), é uma comédia dramática, como deverão ser todos os inícios de vida em comum de um casal que se debate com a possibilidade de virem a ser pais. O casal que formam, trans e na expetativa da chegada de um bebé, é o resumo das inseguranças de um qualquer casal. Um quer, o outro não, o bebé pode estar a caminho, e a montagem de um berço nunca é só isso, porque entre o manual de instruções e sua concretização, há muitas histórias por resolver. Antigas, de cada um, com os seus próprios pais, no casal, sobre o mundo em geral e o que construíram, para se defenderem e afirmar, e, para o que aqui importa, com uma leitura, e um posicionamento sobre o mundo bastante atento, porque desconfiado. O vasto programa não é, porque não tem de ser, original, e isso é uma mais-valia: não há qualquer distinção particular, a não ser tratar-se da história que querem contar, na fronteira entre a ficção e a biografia. É dos corpos trans de Ary Zara e Gaya de Medeiros que parte um discurso sobre o que pode significar paternidade e maternidade na reconstrução de um corpo social e coletivo mais atento à ação política, porque consciente, da sua própria metamorfose.

Há sombras de Kafka, da carta ao pai, mas também e sobretudo, de Gregor Samsa, nesse bebé que poderá chegar, e que vai pôr em perspetivas histórias que ficaram por resolver, conflitos antigos e herdados, que estruturam medos, se alimentam de falhas e sublinham dúvidas. O medo toma a forma de uma marioneta, manipulada com dedicada habilidade pelos dois interpretes. À memória pessoal vem a encenação de Oriza Hirata do texto de Kafka, que em 2014 pediu ao professor da Universidade de Osaka, Hiroshi Ishiguro, especialista em robótica, a criação de um robô, Androide Repliee S1, para o lugar de Samsa, mas também Annette, do filme homónimo de Leos Carax (2021). Em ambos, como aqui, o que essa marioneta representa, na dependência para se tornar viva, é o processo de aceitação de um novo e outro corpo num espaço que parece não ter ainda encontrado a forma adequada de confronto. O que esse bebé revela, e enquadra (para não deixar de incluir a bizarra presença de uma terceira presença que tudo filma), é a possibilidade de apagamento de um dos pais.

“Corre, bebé”, de Ary Zara e Gaya de Medeiros / Fotografia de Filipe Ferreira

Desde o início que a tragédia se anuncia, será para isso que lá está o famoso refrão de The End, dos The Doors, como um poster que deixou marcas na parede no quarto que de adolescente passou para o do casal. É um prenúncio que se confirma, em direta relação com o tumultuoso mundo para onde poderá a vir nascer – na preocupação entre a ética e a ansiedade e a transformação de outro, o que, por inerência, dois serem três não é necessariamente uma multiplicação, mas a confirmação de que três poderá significar a anulação de um, e o estilhaçar de dois.

Nem sempre corre bem, e o espetáculo sofre da rarefação do texto que não é compensada com uma dimensão visual que traga esse caos ameaçador para o cenário, da profusão de relações que quer estabelecer entre lembrança a questionamento, de uma dificuldade ser tragicomédia ou discurso político. É, como será com todas as histórias de casais que se preparam para aumentar a família e, pelo caminho, questionam o que significa ser um casal na negociação entre ambições pessoais e desejos comuns, caótico, o possível e o aquilo que se conseguiu, gerindo a mágoa, os erros e acreditando que o caminho valeu a pena. Em resumo, igual a todos, mas diferente por ser a história de cada um.

“Viagem a Lisboa”, de Joana Cotrim e Rita Morais / Fotografia de Bruno Simão

Viagem a Lisboa, de Joana Cotrim e Rita Morais, cresce a partir dos textos de Isabela Figueiredo, respigando o estruturante Cadernos de Memórias Coloniais (Caminho, 2009), de uma canção de Fernando “Silk” Nobre, Diz à mãe que está tudo bem, também intérprete no espetáculo, e da memória dos atores João Pedro Vaz, Miguel Nunes e Mónica Garnel, que se juntam às duas criadoras. Fala-se de culpa, misturando a política, a social, a emocional, e a familiar; de expiação e redenção; sublinham-se silêncios e incompreensões alimentados ao longo de anos por não-ditos e subentendidos; trata-se a pequena história como se fosse o resumo direto e implicado da grande história; trocam-se nomes, lugares e ações para tornar essa grande história na impossibilidade de existirem histórias individuais; e serve-se tudo à mesa de jantar, porque é a essa escala que as famílias se revelam, porque o Natal pode ser quando a discussão eminente quiser. Aqui é logo em Janeiro, no rescaldo anacrónico de reunião anterior, para não deixar a ferida sarar, enquanto há tempo para esconder e esgravatar, em doses iguais.

Explica-se no texto de apresentação que, para o processo de criação, partiram atores, autores e criadores da “vontade de encarar a família como lugar impulsionador do choque geracional, emocional e intelectual que estes assuntos sugerem, e a impossibilidade de, por um lado, aceder ao trauma de uma outra geração, por outro, repetir os padrões de pensamento desta”. Está lá a filha que caminhou do conhecimento da história, com H maiúsculo, para o voto na extrema-direita, emancipada, divorciada, sem perspetiva de descendência; a filha que, em contraponto, tem nas suas relações emocionais o pagamento da dívida coletiva para com os povos anteriormente oprimidos, e vive, às escondidas, com o dono do restaurante, “retornado” como os pais; o filho, homossexual, exemplo de equilíbrio face ao caos das irmãs, mas presa fácil para a toxicidade e a manipulação; e os pais em eminente divórcio por iniciativa da mãe, em visita aos filhos, que não sabem se os querem receber e, por isso, rebentam o que há para rebentar na cara de quem também já não aguenta mais. Nem de ser rosto de repressão colonial, nem de não se poder refazer, depois de tantos anos de casamento. Por isso, já se sabe, nada sobreviverá a esta noite, como em todas as discussões familiares, e tudo se repetirá novamente, num outro jantar.
O texto não é surpreendente apesar de, a espaços, ser cruel e certeiro em doses iguais, mas nunca deixa que as personagens saiam de um guião que sabemos desenhar-se para o confronto. O programa teórico é vasto, e o modo como o espetáculo vai tentando libertar-se dessa grelha é algo simplista, com as canções interrompem a narrativa, para se colocarem do lado do espetador, como se pedisse para continuarem com eles, os atores, surpresos com a platitude das personagens. Sabemos apenas que acabará bem, porque é sempre assim com as famílias, faz parte. Os vídeos que vão aparecendo, misturando imagens de época em Moçambique com as dos atores em passeio familiar, podem ser vistos como a metáfora perfeita para o barulho surdo que é um jantar entre seres atirados para a mesma família.

“Viagem a Lisboa”, de Joana Cotrim e Rita Morais / Fotografia de Bruno Simão

Mas, no verniz com acabamento de alto brilho que forra o cenário ideal da fotografia familiar, não há particular crescimento para as personagens, que expõem as suas dúvidas, mas não se ouvem – dir-se-ia que é assim numa família, mas uma peça é mais do que um vídeo caseiro que simplesmente registe. Viagem a Lisboa, querendo ser – como são poucas, sublinhe-se e aplauda-se – sobre os estilhaços emocionais de um passado coletivo, é morna como os pratos que ficaram a arrefecer na cozinha do restaurante. No afã do cumprimento de um programa mais do que atual, o espetáculo é como as discussões em família, a repetição viciosa de equívocos. É pena, porque se todas as famílias são iguais, as do teatro deveriam ser, forçosamente e em expetativa, sempre melhores do que as nossas realidades.

Corre, bebé, de Ary Zara e Gaya de Medeiros, estreou a 20 Junho na Sala Valentim Barros/Jardins do Bombarda, integrado na programação do Teatro Nacional D, Maria II, onde se apresenta até 29 de Junho. Poderá ser visto a 4 Junho no Teatro Viriato (Viseu), e dias 5 e 6 Setembro no Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), integrado no programa de circulação da Bolsa Amélia Rey Colaço.

Viagem a Lisboa, de Joana Cotrim e Rita Morais/O Clube, estreou a 5 de Abril 2025 no Cine-teatro de Gouveia, tendo sido apresentado em Pombal (12 Abril, Teatro-Cine de Pombal), Vila do Conde (17 Abril, Auditório Municipal de Vila do Conde), Idanha-a-Nova (24 Abril, Centro Cultural Raiano), Leiria (10 Maio, Teatro José Lúcio da Silva), Guimarães (13 Junho, Centro Cultural Vila Flor), Lisboa (21 e 22 Junho, Centro Cultural de Belém, integrado no Temps d’Images), e pode ainda ser visto no Centro Cultural de Paredes de Coura a 24 Outubro, e no Teatro-Cine de Fafe, a 25 Outubro.

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