Convite à leitura de “Para Viver em Qualquer Mundo — Nós, os Lugares e as Coisas”, do filósofo André Barata
Há qualquer coisa de intrigante para mim neste autor, pela forma como é capaz de nos envolver e convocar com as suas ideias, não por serem estas a última e mais fina novidade, mas antes pelo contrário, porque tal como é costume acontecer com os grandes autores, parecerem simplesmente dar forma a algum pensamento que já se encontra presente, escondido, insinuando-se apenas pontualmente, fruto de umas quaisquer contingências impossíveis de identificar. Neste texto não se vai encontrar o ruído característico exigido pela espuma dos dias, mas antes uma resistência silenciosa, esclarecida e fecunda.
Este livro fecha uma trilogia. Os dois ensaios anteriores, “E se parássemos de sobreviver? — pequeno livro para agir contra a ditadura do tempo” e “O desligamento do mundo — e a questão do humano”, falam-nos de um tempo que nos é cada vez mais estranho e do alheamento relativamente a um mundo de que somos subtraídos, respetivamente. Esta mais recente obra convida-nos a pensar sobre como viver. Não propriamente sobre “O que fazer”, mas antes sobre “Como viver aqui”. Pelas páginas introdutórias percebe-se que o “aqui” encerra um significado mais profundo. Aprender a viver aqui implica, necessariamente, aprender a viver onde quer que seja, numa atitude de cuidado, respeito e, arrisco-me a dizer, de reconhecimento, como propõe Axel Honneth, filósofo gigante abordado por André Barata na segunda reflexão desta tríade.
O livro começa com a tentativa de definir lugar. A definição de lugar de Aristóteles serve, curiosamente, para definir lugar por contraste, contrapondo-o ao conceito de local. O lugar de Aristóteles é o local ao qual opomos o lugar. Local é aquilo que resta depois de lhe ter sido retirado tudo. São as coordenadas geográficas, um espaço despido, não só de coisas, mas também de sentido. Um lugar é precisamente aquilo que existe para além da localidade dos locais. Um lugar é um espaço habitado pelo tempo, onde se criam hábitos no e com o tempo. A habitualidade e a habitabilidade são as características do que é ser lugar. Vivemos tempos em que os locais proliferam em nome do desaparecimento dos lugares, pois à habitualidade onde acontece o fazer, a repetição e a relação de sentido própria do lugar, substitui-se a transitoriedade e a insípida impessoalidade uniformizada do local.
O espaço e o tempo estão intimamente ligados na constituição do lugar. Temporalidade é o tempo tornado lugar, através do hábito de uso desse mesmo tempo. O lugar é o espaço transbordante de sentido, que só o pode ser por ter sido trabalhado pelo tempo, como espécie de palco onde uma certa temporalidade se desenrola. Mas isto não acontece necessariamente. Para poderem haver lugares é preciso cultivá-los, cuidar deles e prestar-lhes atenção, comunica-nos o filósofo de forma avisada. Esta necessidade de atividade para constituição de um lugar, e não atividade que acontece de forma necessária, é precisamente o drama dos nossos dias, em que o lugar se vai dissipando, pelo facto de o seu estímulo não ser prática comum do tempo em que vivemos (pobre em temporalidades).
A rarefação dos lugares acontece de forma quantitativa e qualitativa. Quantitativa, porque há cada vez menos lugares distintos, assemelhando-se todos entre si, e qualitativa, porque os que há se encontram cada vez menos densos. Uma das razões disto é a globalização: a pluralidade de lugares é substituída por um único lugar global — “aldeia global” —, em que o seu sentido como lugar é dado pela globalidade do mercado. Será possível pensar um mundo em que as aldeias inspiram o global em vez de o reproduzirem?