“Coração Aberto”, de Yann Gonzalez: uma certa tendência do cinema francês
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Na edição n.º 31 (janeiro de 1954) da revista francesa Cahiers du Cinéma, o jovem crítico e futuro realizador François Truffaut publicou o infame artigo “Une certaine tendance du cinéma français”, contestando o poder estabelecido no cinema do seu país. Atacando deliberadamente alguns dos realizadores franceses mais consagrados à data, o artigo foi propulsor da Nouvelle Vague, um dos movimentos cinematográficos mais importante da história da 7ª Arte, que veio romper brutalmente com a tendência de cinema instalada na indústria.
Na edição n º 746 (julho/agosto de 2018) da supramencionada revista, os realizadores Bertrand Mandico, Yann Gonzalez, Jonathan Vinel e Caroline Poggi publicaram o manifesto Flamme, onde se lê: “Interessa-nos um cinema inflamado. Um cinema para sonhadores que suam, monstros que choram e crianças que ardem. Um cinema que goza e é consumido livremente. E convidamos todos os corações ardentes a soprar sobre as brasas. Estas palavras representam o desejo comum de fazer filmes, sonhá-los, pensá-los, desejá-los, mostrá-los. Não é um dogma, apenas uma chama na noite, o nosso estado do momento.”.
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“Coração Aberto”, de Yann Gonzalez
Apesar de não haver uma evidente posição de rotura com o cinema atual, vislumbra-se, nas entrelinhas, um certo descontentamento com o cinema da moda, de festival, com estilo mas pouca substância, inócuo e sem originalidade. Há claramente uma intenção de subversão, um retornar à fantasia e ao cinema de género, pincelado com surrealismo, um cinema orgânico e cru. E a verdade é que as suas obras têm evidenciado isso mesmo, desde “Les Garçons Sauvages” (2017), de Mandico a “Jessica Forever” (2018), de Vinel e Poggi, olhando para os projetos mais recentes, onde, apesar dos traços que os ligam, a identidade dos autores não é minimamente comprometida.
O que nos traz a “Coração Aberto”, de Yann Gonzalez. Tendo como pano de fundo uma pequena produtora de cinema pornográfico gay nos anos 70 em Paris, o filme narra as vicissitudes desta família, cuja integridade é ameaçada pelo surgimento de um misterioso assassino. Parte giallo, parte thriller psicossexual, Gonzalez vai balanceando o tom do seu novo projeto com desenvoltura, criando um universo queer bastante vincado, onde explora as suas ideias. Tal como na sua longa-metragem anterior [“Les Recontres d’après Minuit” (2013)], o cineasta aproxima a morte, o sexo e as suas respetivas pulsões, aqui materializadas de forma bastante explícita no instrumento/arma de preferência do assassino. O que à partida se apresenta enquanto metáfora da transmissão do vírus da SIDA, com o desenvolver da narrativa assume uma dimensão mais aberta, um trauma, um esconder de identidade atrás de uma máscara, um satisfazer da pulsão da morte em substituição da, reprimida, pulsão sexual.
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“Coração Aberto”, de Yann Gonzalez
Apesar das mortes que se vão sucedendo a produtora continua a filmar, trazendo para a cena dos seus filmes pornográficos de baixo custo as tragédias que vão ocorrendo, encenando-as, enquanto processo libertador e de exorcismo dos demónios que estão ao virar da esquina.
A banda sonora fica a cargo dos M83, como habitualmente, banda de música eletrónica do irmão do realizador, que invade a película com os seus tons melancólicos perfeitamente adequados ao que se passa no ecrã e à época que está a ser retratada.
Serão Mandico, Gonzalez, Vinel e Poggi os próximos Godard, Truffaut, Rohmer ou Rivette? Provavelmente não, mas cá estaremos para ver o impacto que esta “nova vaga” poderá ter no cinema francês e mundial.