Cozinha em pandemia

por Cronista convidado,    6 Dezembro, 2020
Cozinha em pandemia
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Nos últimos fins de semana, com a obrigatoriedade de recolhimento a partir das 13h, voltaram as corridas às grandes superfícies de comércio de bens alimentares, como aconteceu em março, quando o Governo antecipou um provável confinamento: o primeiro das nossas vidas. Na altura, não se sabia o que isso implicaria ao certo e, portanto, varreram-se as prateleiras de farinha dos supermercados, entre outras de outros produtos. Se, como eu, visitou um destes espaços  recentemente durante os períodos em causa, talvez tenha reparado que, se quisesse fazer um bolo para comer entre sábado e domingo, tivesse de considerar outra actividade de fim de semana. Voltava a haver lacunas no corredor das mercearias doces e, portanto, das duas três: ou a nação se preparava novamente para meter as mãos na massa ou, pior ainda, voltara-se a acreditar na iminência de um racionamento como o que se viveu na recta final da Segunda Grande Guerra — o que, em verdade, nunca aconteceu desde que se declarou guerra ao novo coronavírus. Esta é apenas uma das várias expressões da nossa relação com a comida em tempos de crise, e da forma como a pandemia veio mudar os nossos hábitos de consumo alimentar. 

Antes de ser decretado o primeiro Estado de Emergência, quando a curva da pandemia ainda era apenas uma planície, vivemos um pico de selvajaria humana (paradoxal?) com o açambarcamento de bens essenciais e menos essenciais nos supermercados, numa atitude ignóbil de profundo egoísmo. Surgia assim o primeiro teste à nossa capacidade de sobrevivência em pleno caos: com o comércio e restaurantes fechados, o dever de confinamento e, naturalmente, o medo que nos invadia a casa duas vezes por dia, às horas das refeições, vimo-nos obrigados a satisfazer uma necessidade básica sem recorrer a locais que se haviam tornado  habituais para o efeito, úteis na azáfama dos dias que corriam até então. Comer em casa era a única opção e, portanto, havia que provar a nós próprios e à comunidade do Instagram, que não dependíamos de ninguém para nutrir o corpo. Um pouco à semelhança dos reality shows em que um tipo decide desbravar uma selva com pouco mais que a roupa que leva vestida e tem de se alimentar com o que a natureza oferece. 

Neste deserto em que se tornou o mundo da pandemia, começava-se a prova de fogo com o mais básico dos alimentos — o pão —, e assim se justificava toda a farinha que secretamente tínhamos amontoado nas despensas agora bunkers (ainda que boa parte dela tenha sido desperdiçada em tentativas pouco frutíferas de singrar no ramo da panificação doméstica que dava agora trabalho a uma sociedade confinada, e cuja remuneração se traduzia no levedar dos egos da efémera vaga de novos padeiros). Não deixa de ser curioso como respondemos, primeiramente, a este desafio, uma vez que, antes de tudo, nunca faltaria pão já que as padarias não estavam impedidas de o servir, mas também por se viver, aparentemente, uma guerra aberta ao glúten nas sociedades mais desenvolvidas. Mas não foi só para a cozinha que a pandemia atraiu as pessoas. Com as rotinas resumidas ao mesmo para todos, ainda que com as suas naturais nuances, tornámo-nos mais visíveis para quem estava à nossa volta e vice-versa, na casa ao lado ou do lado de lá da rua, e o pilar da comunidade que nos sustenta enquanto cidadãos, até então coberto pela poeira da sociedade moderna e sofisticada, parecia erguer-se mais polido que nunca. Manifestações de entreajuda e preocupação para com o próximo surgiam em número e e formas louváveis, criaram-se pequenas cadeias de distribuição de bens entre vizinhanças, levou-se refeições às portas de quem não tinha condições para as preparar ou para sair para comprar mantimentos e apelou-se ao consumo consciente dos produtos alimentares, bem como ao recurso ao comércio local em vez do contributo para o engordar das grandes corporações.  

Reataram-se e fortaleceram-se assim os laços gastos com a comunidade como não se havia visto dantes, nem mesmo durante a outra grande crise da nossa geração. Como se nos tentássemos reconciliar com os comerciantes de rua que abandonámos quando corremos para o centro comercial, ou com a família que só pôde fazer um pão porque nós trouxemos toda a farinha que restava na prateleira naquele dia de compras, ou mesmo como se quiséssemos manter por perto os vizinhos de quem dantes não nos dávamos conta porque os tempos eram difíceis e “nunca se sabe o que pode vir a ser preciso”.  

Na obra “The Philosopher’s Cookbook”, de Martin Versfeld, pode ler-se que “cada pedaço de vida é um ego a tentar ultrapassar os outros”, o que resulta num caos de egos criado por nós e nos leva a ver na natureza o espelho da nossa sociedade, “um canibalismo de egos”. Estes ventos de esperança que sopravam pelas ruas desertas e nos entravam pelas janelas onde passávamos horas a olhar para ver o que já não havia para ver e a ouvir o que dantes não ouvíamos podiam ser sinal de uma humanidade em mudança, que avançava no  sentido do convivium que é, antes de tudo, a natureza, ao qual é necessária humildade, “o  segredo do processo evolucionário” de acordo com Versfeld. Rapidamente percebemos, porém, que a humanidade estava, talvez, no mesmo ponto em que a tínhamos deixado antes do “inimigo invisível” tomar as rédeas de um mundo em desequilíbrio em que uma raça desgovernada desaprendeu a sua condição. Fossem outros os tempos, e esses ventos teriam servido, pelo menos, para fazer girar os moinhos e garantir que não nos faltava o pão…

Crónica de André Cabrita
O André nasceu em Aveiro e tem formação em multimédia e design interactivo. É um apaixonado pela cozinha e é filho de cozinheira. Passou também os últimos anos no Porto e em Londres.

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