Cravos que querem mais água

por João Maria Jonet,    24 Abril, 2021
Cravos que querem mais água
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O ano passado escrevia no Jornal Crónico sobre o 25 de Abril confinado. Uma oportunidade engraçada para nos recordarmos da importância da liberdade enquanto sentíamos a sua falta na pele. O que se passou desde então, principalmente na violenta vaga de janeiro, lembra-nos que os portugueses ainda têm uma relação estranha com a liberdade que ganharam. Não será problema único do nosso País e não terá muita ligação com maturidade democrática, como muito comentador gostará de afirmar para ganhar aquele pontinho básico do “só neste País”. É um problema geral, que não vale a pena justificar com teorias de excecionalidade lusa. 

Quando o medo, a fome e a doença apertam, a proteção de direitos passa para um segundo plano. Não quero com isto dizer que não se deveria impor restrições e que o Estado não agiu bem. O meu problema não está aí. Está na passividade de um povo que vai no 15º “estado de emergência” sem que se exija coerência e honestidade na comunicação de medidas por parte do Estado, a quem demos carta branca sem exigir um recibo. Aqui, e em todo o lado, o problema não está nas medidas, mas sim em não estarem definidas. Não vou andar a comparar a PIDE com a Autoridade Tributária como certas luminárias. Antes quero lembrar que o seu mandato era totalmente arbitrário e que durante 47 anos, até um belo dia de Abril, nos mantivemos maioritariamente imóveis perante esses comportamentos. A nossa Democracia não é um dado adquirido, não podemos levar levianamente ameaças ao sistema de regras que construímos. Se permitimos discricionariedade à autoridade, como é que pomos esta pasta de dentes no tubo outra vez? Não sei, mas parecemos satisfeitos com o facto de a termos tirado cá para fora. 

Estamos satisfeitos. Estamos, não estamos? O País é “bem gerido”, as “contas estão certas”, não há “crise política”. Está tudo bem, “vamos todos ficar bem”. Uma coisa tenho a certeza: “não foi para isto que se fez o 25 de Abril”. Porra, é que não foi mesmo. 

O 25 de Abril era um sonho, conscientemente aspirando a mais do que era possível para ficar o mais próximo possível do impossível que buscava. Naturalmente, produziu uma geração de insatisfeitos crónicos que não foram nesta cantiga intelectualóide e quiseram mesmo ir para o sonho. A apatia e desilusão que daqui resultaram são o principal problema da nossa Democracia. 

Os portugueses terão de parar de se contentar com a competência mínima, com a gestão corrente e passar a ambicionar mais do que a cepa torta. 10 anos de incompetência aceitável de Cavaco e companhia foram aprovados pelo eleitorado, tal como foi a austeridade encapotada de Guterres e agora de Costa. A ambição de Abril não poderá morrer na ladeira dos bajuladores das agências de rating, que fazem da banalidade um Deus e do insatisfatório extraordinário. Não poderá ficar agradada com uma feijoada numa nova ponte, para depois voltar para viver sem água e luz no seu bairro social.

Quem fez Abril não queria uma governação que procurasse agradar mais a credores do que a cidadãos, não queria que as pessoas vivessem satisfeitas com mínimos olímpicos, porque o amorfismo nunca será particularmente resistente aos argumentos do autoritarismo. 

Os verdadeiros democratas quererão que a atividade política se paute não só pela capacidade logística, mas também pela capacidade de inspirar. Que procure mais do que ser competente, ser sonhadora. A quem governa exige-se que seja sério e honesto com o que não é possível fazer agora, mas que não se contente com o possível. 

Que não olhe para o eleitorado como gado para guiar, mas sim como seres humanos para fazer acreditar. Se se puserem com as conversas do suficiente, estarão a abrir a porta para o fim do que custou tanto a conquistar. Com esta conversa toda, só me consigo lembrar de José Mário Branco, com quem vou acabar este desabafo:

“Uma porra pá, um autêntico desastre o 25 de Abril
Esta confusão pá, a malta estava sossegadinha
A bica a 15 tostões, a gasosa a sete e coroa
Tá bem, essa merda da PIDE pá, Tarrafais e o carágo
Mas no fim de contas quem é que não colaborava, ah?
Quantos bufos é que não havia nesta merda deste país, ah?
Quem é que não se calava, quem é que arriscava coiro e cabelo, assim mesmo, o que se chama arriscar, ah?
Meia dúzia de líricos, pá, meia dúzia de líricos que acabavam todos a fugir para o estrangeiro, pá”

A grande revolução de Abril seria fazer dessa “meia dúzia de líricos” a maioria. Estamos mais longe do que queria, mas teremos de continuar na luta.

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