Criminalizar o aborto. Quando as nossas convicções colidem com o sofrimento dos outros
Antes de escrever sobre uma temática tento informar-me o mais possível, mesmo que já tenha uma opinião definida há algum tempo. Uma das razões que me faz passar por esse processo é que, quando se trata de uma temática fraturante na sociedade, tendemos, com o passar do tempo, a ficar cada vez mais tribalistas a defender as nossas convicções; é normal, mas ainda assim perigoso. Para além disso, exactamente por já termos uma opinião definida, tendemos a saltar passos importantes, que nos levam a proferir afirmações com base em pura desinformação; não nos esqueçamos, até os factos podem evoluir ao longo dos tempos.
Um dos momentos em que tive de rever essas mesmas convicções e valores, como também informar-me de forma bastante aprofundada, foi na mais recente decisão por parte dos legisladores do estado de Alabama em criminalizar o aborto, com excepção dos casos em que a saúde da mulher está em risco. Uma das coisas que me traz algum descanso, ou pelo menos ainda me dá esperança, é que essa decisão ainda não pode ser colocada em prática e existe a possibilidade de acabar por não ser no futuro, por decisão do Supremo Tribunal que ainda tem bastante poder nos EUA. Para além disso, as mulheres que, neste momento, queiram marcar essa operação, podem fazê-lo, felizmente. Outra informação importante e que nos media e nas redes sociais está a ser transmitida ou de forma factualmente errada ou de forma exagerada é a seguinte, as mulheres que decidirem abortar, no caso de a lei realmente passar, não vão ser presas, já que, em termos legais, não vão ser consideradas responsáveis pela situação. Porém, já no caso dos médicos, esses sim vão ser considerados culpados, sendo que vão ser categorizados, segundo o sistema penal americano, como criminosos do tipo A, em que a pena varia entre dez e noventa e nove anos. No caso de tentarem realizar um aborto, mesmo que acabem por não realizar (por exemplo, quando são apanhados pela polícia), serão considerados criminosos do tipo C, o que responde a uma pena de prisão superior a um ano.
Fazer esta separação entre os factos é importante para o debate, porque, assim, temos finalmente uma base em comum para iniciar uma discussão. Independentemente destas minúcias que referi anteriormente, é impossível não concluir que temos um contra movimento — já existente há muito tempo e que demonstrou o seu poder mais uma vez —, que coloca em causa diversos pilares de uma sociedade progressista, no que toca aos direitos das mulheres. Para além disto, coloca a mulher num patamar de pura humilhação na praça pública e tipifica os médicos como criminosos e assassinos. Isto, acima de tudo, faz com que se crie um clima tóxico que elimina qualquer tentativa de combater a raiz do crime a apoiar as vítimas. E falo de crime e de vítimas porque a discussão em cima da mesa não se trata unicamente de sermos pró-vida ou não. Não se trata de discutir a partir de que momento é que se considera um feto um ser humano, quais são os limites para a auto-determinação e controlo da nossa vida e corpo ou que valores é que devem reger a nossa sociedade. Estamos no patamar de discutir, sim, se violação é crime, se violação em algum momento é consensual — parece-me bastante contraditório, já que isso tornaria a violação num simples acto sexual — e se a vítima deve acarretar com a dor e a responsabilidade de criar uma vida à qual foi forçada a ter e da qual fará uma ligação natural e directa ao seu violador.
Até que ponto as nossas convicções, valores e fé devem influenciar a vida dos outros e se podem chegar ao ponto de lhes criar sofrimento? Esta é uma pergunta que devemos fazer cada vez que entramos numa discussão ou exercemos o nosso direito de voto, por exemplo, num referendo. Por outras palavras, e olhando para um país conservador e católico como Portugal, é importante perceber em que medida é que o facto de sermos católicos ou não tem legitimidade em influenciar a nossa opinião e o nosso sentido de voto, no que toca ao direito de as mulheres abortarem ou de um casal homossexual de adoptar, ambas situações já discutidas cá. E isto vai para além das tecnicalidades de uma lei, que obviamente devem ser discutidas e que podem criar divisões mesmo entre pessoas que, em termos gerais, concordavam entre si.
A primeira discussão interna de cada um deve começar pelo aspecto que referenciei no parágrafo anterior. Coloco em causa este ponto, porque considero que, por defeito, é um acto egoísta querermos influenciar ou limitarmos o comportamento de uma terceira pessoa, com base num conjunto de regras que consideramos obrigatórias. Aliás, julgo que é covarde responsabilizarmos uma doutrina, uma religião ou um deus, em vez de nós mesmos por essas decisões. Isto, obviamente, não significa que devamos viver numa sociedade onde não existam regras e valores pelos quais todos nos devamos reger; aliás, é através de determinadas leis que as minorias, por exemplo, são defendidas. Mas no que toca a questões que ainda são fracturantes e a sociedade ainda não se expressa de forma unânime, este é um aspecto importante a debater e que continua a reflectir-se em muitas decisões que decidem o progresso do nosso país e de outros, como é o caso dos EUA, país do politicamente correcto e de um conservadorismo assustador em determinadas regiões e comunidades.
Por fim, é importante fazermos uma introspecção da forma como olhamos para a família, para o sexo, para o género, sistema de saúde e do sistema educacional, para os refugiados, outras religiões, etnias e formas de viver. Isto, porque em países desenvolvidos continuamos a ver sociedades conservadoras comandadas ou representadas sempre pelo mesmo tipo de pessoas que, enquanto conseguirem, irão tentar homogeneizar a sociedade num mundo claramente multicultural.
Existem naturalmente zonas cinzentas nesta discussão, daí ser tão interessante e complexa, mas, pelo menos na minha óptica, parece-me bastante claro que, no fundo, o caso de Alabama trata-se de um conjunto de vinte cinco pessoas machistas, covardes e perigosas que quiseram directamente fazer com que as suas opiniões pessoais se transformassem numa lei, partindo de uma posição privilegiada, como costuma acontecer.