Crónica literária. Eros de ninguém

por Ana Monteiro Fernandes,    13 Fevereiro, 2022
Crónica literária. Eros de ninguém
Fotografia de John-Mark Smith / Unsplash
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Não sabia o que havia de tão precioso ou interessante no jardim para o raio do animal não sair de lá. Parecia-lhe tão caótico, principalmente após ter sido abandonado. Não era tratado há anos. Desde que o marido morreu nunca mais regou uma flor e Eros, o gato, nunca mais entrou em casa. Só se aproximava quando queria comer e a tigela tinha de ser deixada à porta, do lado de fora. Invejava-o, no fundo invejava-o. Pode parecer estúpido dizer-se isto, mas tinha inveja de um gato. Não conseguia entender o que ele entendia no meio daquela secura de flores e, oh, como ficava tão bem no meio delas. Isso ainda a confundia mais, algo ficar bem no meio da secura, da desordem do jardim. Era-lhe difícil esse sentimento, essa visão, quanto mais tentar expressar isso. Ainda não tinha ouvido o nome para tal e, a verdade tem de ser dita, é difícil catalogar as coisas sem nome. Dizemos estranhas, mas isso é tão pouco para o que ou para quem não conhecemos o lugar. O lugar, o lugar. Eros não estava lá, em casa, na alcova que ela própria costurou para ele a pedido do marido. Isso transtornava-a, burro do gato. Burro e imbecil. O que é que ele veria naquelas flores de secura? Não era lá que deveria estar. O gato da inveja, o animal que invejava porque parecia pertencer àquele jardim, bahhhh. É que uma vez ouviu num desses programas de semana à tarde que o que nós percepcionamos como uma realidade material — o nosso corpo, a mesa que está à nossa frente, o copo em que pegamos — pode muito bem ser um grande holograma, uma fabricação por computador. Meros gráficos de um grande jogo ao qual os nossos cérebros se encontram ligados.    Imaginava, então, esses cérebros arrumados em gavetas, devidamente encaixados. Mas, por vezes, sentia que a sua gaveta deveria ter sido deslocada e aquele a quem competia voltar a pô-la no lugar se havia esquecido ou, ainda pior, sucumbido à preguiça. Mas Eros, que não estava no seu lugar, ficava tão bem no caos da secura daquele jardim.  Como é que conseguia dar uma aparente ordem àquele sítio?

A idade já lhe pesava e à medida que ia pressentido a chegada do último dia ia-se esquecendo das coisas. Não se lembrava muito bem da imagem da família. Não se lembrava muito bem da imagem das pessoas. Nem sequer sabia bem se o seu marido e o amor em conjunto fora real ou uma ilusão. Talvez a transcendência ligada a esse sentimento, pensava, fosse real. Estranhamente era das poucas imagens que não lhe sabiam a prisão. Com ele poderia ter sido, mas não era a isso que lhe sabia agora. Tratava-se de uma generosidade de dar algo de si enquanto via e experienciava outro ser. Um amor em alteridade que só sentia em poucos fragmentos daquela que foi a sua jornada. Mas os factos, em si,  iam-se tornando cada vez mais finos, mais ténues, mais longínquos. Sempre se definiu como a filha de tal…, mulher de tal, com a profissão tal… Agora que essas certezas se desvaneciam parecia que penetrava, cada vez mais, na terra de ninguém. De alguma forma era como o gato que invejava e não estava na alcova que lhe competia. Ela, também, começava a caminhar fora do que nunca ousara questionar — a designação do que fora. Mas se, ao menos, pudesse compreender aquela secura das flores caóticas do jardim.

A última manhã veio com o sol. A velhice do corpo caiu-lhe com um peso como nunca antes lhe havia caído. Um peso que pesava todas as toneladas do mundo. Eros entrou no quarto, estranhamente conspurcou a regra a que se havia submetido e entrou no quarto acompanhado por uma criança. Sentia que a conhecia de algum lado mas não se conseguia lembrar de onde. A menina estendeu-lhe a mão, como que a convidar para ir. Assim o fez, de mãos dadas ambas caminharam pelo caminho de ninguém. De ninguém porque já nem se lembrava do seu nome. Eros guiou-as na frente, fê-las sair de casa e conduziu-as até ao jardim. As flores continuavam tão secas e disformes como sempre lhe haviam surgido aos seus olhos. Olhava-as e tentava, ao mesmo tempo, lembrar-se do seu nome. Não conseguia, o que lhe chamavam parecia-lhe tão longínquo. Queria que o seu nome lhe voltasse aos lábios, mas nunca mais foi capaz de o pronunciar. Eros deitou-se na terra e a menina que lhe parecia tão familiar continuava a dar-lhe a mão. O nome, o nome, o nome, já não havia nome. Ninguém, ninguém, ninguém, agora sentia-se ninguém. E há medida que “Ninguém” nascia, a secura das flores ia-se transformando numa delicadeza que ia crescendo aos seus olhos. Via e experienciava aquela beleza de secura enquanto a sua própria beleza brotava do seu corpo. Algo demasiado ténue mas que reivindicava o seu espaço, o seu próprio jardim. Aquelas flores deveriam continuar ali, naquele lugar de ninguém, sem serem cortadas ou apanhadas por nada. Mesmo assim, na sua delicadeza, na sua doce disformidade seca.  Eros não está, não cede à ilusão do que se pensa que se quer, Eros é-se. Fechou os olhos, caiu no chão. A menina, tal como havia aparecido, assim se esfumou no ar. O gato permaneceu ao seu lado.

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