Da alma um fogo me sai
Não te consigo escrever mais cartas de amor. E cheguei a escrevê-las nos momentos de maior dor, nos momentos em que a faca se enterrava no coração e o peito jorrava sangue. Tantas vezes tentei escrever isto quantas as que te procurei compreender e seguir ao longo dos anos. Escrevi uma carta ontem que ficou a meio do primeiro parágrafo e, bocejando, voltei ao sonambulismo diurno alimentado por cafeína, pensando que no dia seguinte aditaria mais frases ao choro em prosa, mas não aconteceu, não sai nada agradável sobre essa pessoa que amei mais que o mundo, nem um singelo gosto muito de si, minha menina, agora senhora. Quando penso em ti, embrulha-se-me o estômago, já não de saudade, já não de paixão, assomam as náuseas à custa das lembranças das cacetadas passivo-agressivas, das vitimizações que encobriam mentiras e das acusações que converteram sentimentos puros em faminto deserto. Concentro-me nos tempos bons, mas esses tempos são passado, deles restam as paisagens, o miradouro da Graça, a varanda que dava para o panteão de Lisboa, a praia do Tamariz. De nós os dois, da nossa história que era suposto durar para sempre, ficaram frases, promessas que nem o vento mais leva.
“Estou feliz, esqueci-te”, ouço-te dizer, nesta imaginação que repisa diálogos da pré-história, e embrulho-me num lodo de discussões e arremessos de pratos terminadas de lenço na mão enxugando lágrimas. Não te escreverei mais cartas de amor. Estas são as minhas últimas palavras sobre este tema deprimente que foi a nossa união, as minhas últimas palavras sobre uma despedida que não chegou a despedida. Um punhado de rancores amaciados pela passagem do tempo, o tal que tudo cura menos o desgosto. Em Lisboa, lá por volta de ano de 2011, disseste-me numa casa de fados que não querias mais nada comigo eu não te acreditei. Em Londres, talvez dois anos depois, afirmaste num hotel que não tinhas o mínimo desejo por mim, e eu, tolo, segui remando contra as evidências. Mais tarde, apareceram as mensagens escondidas, os emails falsos, as conversinhas com os ex-namorados, os choradinhos contra o companheiro vilão que tudo errado fazia. Certa vez, expulsaste-me do apartamento em que vivíamos, recomendando que procurasse outro, e eu fiz-te a vontade e procurei outro, o que me garantiu mais uma série de anos nesse inferno que criámos. Depois, veio a tua traição e as mentiras e a descoberta de que a tua personalidade, que eu achara de santa, era banal como as outras. Filhos, também os tivemos, e bonitos, e pensou-se que aí viria a calmaria e a esperada felicidade, mas a felicidade não nos abençoou.
Escrevo este final, não sei bem porquê, por não haver nada a dizer, por estarmos unidos por um pacto de silêncio e desprezo mútuo. Sentado no sofá, mirando a árvore de Natal e a casa vazia, escrevo este ponto final zangado comigo mesmo por ainda persistir na escrita daquilo que dói, por vinte, mil anos depois, esta cabeça ainda achar que tem algo a dizer sobre matérias tão negras. O nosso amor partiu para longe, zarpou num barco de papel numa travessia oceânica que terminará quando nenhum de nós estiver vivo para o lembrar. Se o barco não se desfizer no mar, será um dia apanhado por uma criança que lerá os versos de Camões: “É tudo quanto sinto, um desconcerto; / Da alma um fogo que me sai, da vista um rio.”