Da candura
Vamos recuperar a moda do braço dado
Vamos dar dignidade aos nomes carinhosos
Ema (letra de Samuel Úria para Cindy Kat)
E isso das coincidências, amigos: o que podemos fazer com elas? Olhá-las como sinais misteriosos, aceitá-las como flores do acaso, encará-las com um sorriso? Tudo isso, parece-me. Os dias encarregam-se dessas simetrias improváveis e para quem se dedica ou é mais sensível à sua observação, são sempre fenómenos preciosos que bem aproveitados ajudam a reflectir.
De forma que por causa disso aqui estamos hoje. Porque no espaço de pouco tempo houve uma palavra anacrónica e longínqua – que me é estranha e quase desprezada – que resolveu invadir-me de forma improvável. Primeiro, através de uma audição de um disco para o qual me pediram um texto; depois em conversa casual. Essa palavra é candura.
Se não a ouvem é porque é pouco usada e ainda menos praticada. Significa, de modo breve, inocência ou ingenuidade. Para hobbesianos encartados, como é o meu caso, trata-se de um território tão estranho como fascinante. É uma paisagem de que não temos memória e a que nem sequer queremos voltar. Mas sabemos que existe, ainda que em imagens mentais tingidas a sépia. Para dizer a verdade, até agora a candura apenas me interessou pela possibilidade da sua perda: os romances de “coming of age”, as ilusões que se esfumam pela implacável realidade têm sempre mais interesse ou lucro para o céptico empedernido. Mas se de repente o tempo e a vida nos resolverem dar uma lição?
É aceitá-la com modéstia e proveito. Ao ouvir a canção Embaraçado, do Pedro de Tróia, que já foi divulgada e faz parte de um disco prestes a ser editado, ouvi estas palavras confessionais de um moço que lamenta não ter contrariado a sua, lá está, candura: “Sempre fui embaraçado /Magro corado educado /sem ponta que se desaproveite” para concluir “Não quero ser embaraçado”. Mas a própria canção (e em rigor todo o disco mas sobre isso falaremos um dia) desmente o enunciado. Fez-me lembrar os versos em epígrafe do Samuel Úria, justamente porque surgem em contraciclo, como uma forma de resistência doce mas implacável à dureza dos dias. Ser cândido, como bem o provou Voltaire, é ser sujeito ao escárnio ou, em registo mais solto, à ironia. A inocência ou o olhar meigo sobre as coisas e as pessoas é confundido com tolice e impreparação para a vida. Pode ser e muitas vezes será; mas é um valor que tem de estar sob o entulho do nosso cepticismo sob pena dos tolos serem quem não o conseguem salvar.
Eu sei que a candura não só é incompreendida como está fora de moda na idade das caixas de comentários. Mas façamos um esforço para mantê-la. Uma rapariga que cora, um olhar que se baixa, uma frase ingénua que se solta contra o mundo, um pudor discreto mas presente: eis um bom passo para a salvação colectiva.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.