Da infância
O que fazemos da infância? De que nos serve, como usamos esse prefácio de nós mesmos? Demasiadas perguntas retóricas para um início de crónica, talvez. E no entanto.
Sobre a infância e a sua influência no que mostramos que somos muito se pode dizer – sobretudo nesta era pós-freudiana, que justifica análises de personalidade com acontecimentos e memórias dessa época de crescimento. Mas daqui desta varanda só vejo o dia-a-dia, e é isso que me interessa. E desta varanda proclamo: a infância está sobrevalorizada. Um pouco como a juventude, de resto. Mas essa será outra conversa.
O mais importante da infância é garanti-la. Fazer com que exista, com carinho, protecção e amor. Quando isto acontece – o que é uma sorte, diga-se – toda a idealização me parece descabida e menor face ao adulto que somos. Para variar, socorro-me da literatura para dar a perceber duas maneiras antagónicas de enfrentar o nosso inicio: Philip Larkin dizia da sua infância que foi um “tédio esquecido” (“a forgotten boredom”). Conhecendo a biografia do poeta sabemos que estava a exagerar um pouco – mas só um pouco. No outro extremo, outro poeta inglês: AE Housman dedicou belíssimos poemas a esses dias longínquos, e para eles cunhou o seu verso mais célebre: “That is the land of lost content”. O país do contentamento perdido, inalcançável, a que nunca mais iremos regressar. O primeiro, um melancólico; o segundo, um nostálgico. Como de costume, e como em quase tudo, estou com Larkin.
Há algum tempo pude rever alguém com quem partilhei os recreios da escola primária e que desde então não tinha voltado a ver. A vida tem o hábito de desrespeitar qualquer tipo de nostalgias. E se bem que consegui colocar o rosto dessa minha amiga em folguedos e contentamentos perdidos, quem eu conheci foi outra pessoa e foi a essa pessoa a que reagi. De nada me valeram ou interessaram presumíveis momentos dourados de pureza e inocência. Eram fantasmas, por mais amáveis ou bem embalsamados que estivessem; e não é muito interessante conviver com fantasmas.
O que vale mais, uma suposta inocência ou a perda disso mesmo? Eu voto pela segunda. A primeira terá que ser precavida, mas nunca idealizada. As culturas que dão valor à velhice percebem que a infância não é um tempo ideal: apenas uma etapa necessária para uma sabedoria transmissível. Não se pode responsabilizar algo com que crescemos indefesos. É por isso que as nostalgias das reuniões de antigos colegas são falácias suportadas. Ninguém se quer ver como era ou pelo menos comparado com o que é. A infância, embora tenha de ser suportada, é sobrevalorizada.
Compreende-se o culto: por vezes a infância é uma urgência que nos acontece em adultos. Leio o excelente Fotografia Apontada À Cabeça, terceiro livro do mano José Anjos, e pressinto nos versos uma infância entalada na garganta, uma criança que caiu e pede ajuda para se levantar. Interessa-me isto, a infância como motor de criação; mas não como lastro para a vida adulta. A velhice é-me mais grata e bem-vinda porque é sempre sabedoria. E como dizia Píndaro, uma velhice honrada e graciosa é a infância da imortalidade.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.