Daniela Vega: “Quem nunca se sentiu descriminado, rejeitado ou recusado mente”
Depois do genial Glória, de 2013, o chileno Sebastián Lelio volta a apoiar-se no eterno feminino para nos devolver uma magnífica personagem, no caso, Marina, uma jovem transexual forçada a enfrentar novos desafios e o preconceito de ser diferente após a morte do seu amante. Uma Mulher Fantástica é um filme apenas tornado possível graças à partilha e entrega de Daniela Vega, determinante para Lelio escrever o guião devolvendo-o depois a esta mulher fantástica para interpretar seguramente o papel feminino mais marcante do ano. Razão pela qual não surpreenderia ver a nomeação de Daniela Vega ao Óscar de Melhor Atriz, o que desse ponto de vista seria uma estreia absoluta.
Conhecemos Daniela Vega em fevereiro passado, no festival de Berlim, num encontro que se tornou inevitável após a sua prestação em Uma Mulher Fantástica, um dos melhores filmes da competição e que viria a ganhar o Urso de Prata para o Melhor Argumento. Um guião em que a sua própria experiência foi tomada em conta para criar a personagem de Marina. Naturalmente, o convite de Sebastián Lelio para a interpretar acabaria por ser o corolário natural.
Como definiria Marina?
Como uma trindade entre a dignidade, a resiliência e a rebeldia. Essa foi a base de construção de Marina.
Explique um pouco o seu papel de consultora cultural em Uma Mulher Fantástica. Foi o seu ponto de partida para participar no filme?
O Sebastian escreveu o guião sem eu saber. Pensei que estava apenas a investigar os dados que lhe fui passando. Nunca perguntei o que fazia com essa informação. Até que um dia, dois anos depois de me conhecer, envia-me um guião que dizia UMF, Uma Mulher Fantástica. E entre parêntesis “Top Secret”. Quando li as primeiras 50-70 páginas percebi que era tudo sobre o Orlando (a personagem do companheiro de Marina), não percebi bem. Até que Orlando morre e a descrição da câmara passa a Marina. Quando acabei de ler percebi que era uma história sobre uma rapariga transexual. Entretanto, o Sebastián ligou-me e disse-me que esse guião era também o convite para trabalhar com ele. Claro que lhe disse que sim.
Percebeu que parte se si seguia nessa personagem?
Sim, claro. Foi uma experiência muito complexa e também a possibilidade de encarar este desafio como algo pessoal. Mas tal como a Marina no filme, também eu assumi esse desafio como uma coisa positiva.
Poderemos dizer que esta é uma personagem que viveu experiências próximas às da Daniela?
Todos os atores têm um ponto de ligação dos seus personagens, com a sua realidade. Neste caso, com a particularidade de ambas serem transexuais. Da minha parte, o que tento é viver a minha personagem com a maior dignidade possível. Talvez seja isso o que mais partilhamos. Mas a Marina é uma personagem que está muito para lá enquanto que eu estou ainda muito aqui.
O que existe então de si em Marina?
Durante a elaboração do guião o Sabastián conversou comigo durante muito tempo. Mas foi ele quem escreveu o guião, eu não tive nada a ver com isso. As conversas prévias que tivemos é que alimentaram situações que puderam entrar no filme. Algo que tem a ver mais com emoções do que com situações.
A música tem importância fundamental no filme. Em particular os seus momentos musicais. Sei também que gosta de cantar. Como foi esse momento em que canta ópera?
O filme tem uma linha musical própria, como se fosse uma partitura que nos vai guiando emocionalmente. Nesse sentido, a música funciona como mais uma personagem. As músicas que canto no filme foram um acordo que eu fiz com o Sebastián. Nesse sentido, procurámos peças líricas que tivessem a ver com a mensagem do filme.
Encara a aceitação de Daniela Vega enquanto ser transexual como um acto de liberdade?
Sim. Cada vez que nos submetemos e auto julgamos e analisamos, encontramos alguma resposta a esse questionamento, somos mais felizes e livres.
Sentiu-se bem a assumir a sua feminilidade num filme? Acha que a sua felicidade também se coloca dessa forma?
Acho que a Marina encontra a beleza e a poesia mesmo num deserto. E essa uma das características da resiliência. Quando criei Marina passei-lhe essas qualidades. Mas queria também conduzir esta Marina a um lugar feminino. Queria construir uma personagem que estivesse num lugar feminino. Mais do que buscar ícones femininos, interessou-me mostrar o que significa pertencer à experiência feminina, à vivência feminina. Aqui evoco pessoas que conheci e que estão vivas. Foi esse o meu referente, a experiência feminina como tal. Sejam mulheres, homusexuais, transsexuais, todas cabiam no corpo de Marina. Mais do que um ícone, quis a sensação do que significava para mim ser mulher.
Qual foi a parte mais difícil de encarnar nesta mulher?
A complexidade maior da personagem foi colocar uma capa por cima de outra, e outra e de outra. Isso significa também a quantidade de coisas que tive de aprender. No fundo, queria chegar ao lugar em que não necessitava de uma qualquer característica para ser descriminada. Porque o facto de sermos humanos já é suficiente para sermos descriminados. O que quis foi criar uma personagem que tivesse essa qualidade, essa resiliência de ser poderosa.
Agora que tem uma imagem pública como atriz acha que tem mais responsabilidade?
Sinto a responsabilidade com o meu trabalho. Sou uma atriz disponível para fazer qualquer personagem. Seja transgénero, X-género, masculino ou feminino. Posso interpretar qualquer uma delas. Sei que a minha figura no mundo poderia ser uma referência para alguns, mas o meu compromisso é com o meu trabalho. Sei que muita gente me está a observar, mas eu não sou ativista. A minha pressão é fazer filmes e gerar reflexões. É essa a forma que tenho de ser ativista.
Faz parte de algum movimento ativista?
Faço parte da comunidade LGBT, mas o meu trabalho não é responder a perguntas, mas a fazer perguntas. O que pretendo é questionar: que corpos são legais, que corpos são ilegais? Quem disse que não se poderia conquistar tal ou tal corpo? Quem disse que não se poderia ser de uma forma determinada? A validação do questionamento humano é o meu trabalho artístico. Para mim, a arte é isso: uma grande pergunta! Todos somos Marina.
Se calhar, é isso que é importante em Marina: fazer-nos refletir sobre tudo isso.
O que eu tentei fazer foi traduzir da forma mais orgânica possível, e da forma mais massiva possível, a sensação de opressão. Quem disser que nunca se sentiu descriminado, rejeitado ou recusado mente. Aí a responsabilidade é de cada um. Eu apenas faço as perguntas.
Como se preparou para renascer nesta personagem?
Primeiro, fiz essa entrega de informação sobre o que era a vivência trans. Mas, a partir do momento em que aceitei a personagem tive tempo de criá-la, de refletir e perceber como a faria. A criação da personagem era minha, por isso tive de perceber como a partir de todos esses ingredientes poderia criar uma personagem credível. Isto apesar de Marina e eu sermos completamente diferentes. Passava-me se alguém me impedisse de despedir-me do meu namorado. Não seria tão passiva como ela. Mas a Marina é muito mais elegante do que eu. Ela tem um grau de elegância superior. Somos ambas dignas, resilientes e rebeldes, mas a Marina é uma espécie de diva, muito sofisticada. Eu sou muito mais ordinária que a Marina.
Vai continuar a ser atriz?
Claro, claro. Gostaria de continuar a fazer cinema e a cantar. No fundo, continuar a carreira, com mais personagens trans. Mas o importante é estar aqui, a participar.
(entrevista de Paulo Portugal em parceria com Insider.pt)