David Bruno guina pelo litoral em “Miramar Confidencial”
A David Besteiro não faltam, em 2019, credenciais: crónico amante de Vila Nova de Gaia, é como icónico beatmaker de Conjunto Corona ou como ocasional colaborador de PZ (enquanto dB) que tem emergido cada vez mais na música nacional. De dB e Conjunto Corona traz-nos a sua veia mais hip-hop — tendencialmente a baixa rotação, lo-fi e mergulhada em psicadelismo — mas é como David Bruno que em 2018 lança O Último Tango em Mafamude, pérola de kitsch lusitano, merecida (e inédita) fusão entre música romântica, desprendidos solos de guitarra e letras, que, apesar de rarefeitas, são dignas de inspirar encontros românticos junto do emissor da RTP. Mais do que um projecto musical, dB enceta a nova identidade como uma completa experiência visual; uma vídeo-narrativa que conta a história de um jovem apaixonado (e rejeitado) pela própria cidade.
Muitas destas descrições continuam a ser uma directiva certeira para descrever Miramar Confidencial. Do coração de Mafamude, a acção orienta-se desta vez direcção a Miramar — litoral urbano escolhido por David Bruno para narrar a história de Adriano Malheiro, um endividado e pouco honesto empreiteiro forçado a decidir entre o amor da sua vida ou a máfia local de construção (história fictícia, ainda que inspirada pelos numerosos graffitis acusatórios do homónimo “Adriano Malheiro Caloteiro” que marcam a região à data da obra). Trama montada e novamente em formato maratona videoclip, o universo de vespertinos 90s habitados por David Bruno chega-nos com uma nova roupagem: para longe ficou o meloso romance de subúrbio, Miramar é uma cidade de pecado e extravagância, repleta de locais emblemáticos e, sobretudo, representativa de um período muito específico na história de Portugal — o tão badalado quanto nostálgico “tempo das vacas gordas” após a entrada de Portugal na União Europeia (então CEE).
Reflectindo a luminosa época, tanto os samples escolhidos como a estética que compõem Miramar Confidencial remontam largamente ao outro lado do oceano — aos filmes protagonizados por Seagal e Van Damme, às luzes de uma Miami aqui convertida em parente pobre mas não menos orgulhosa: Bebe & Dorme, primeira faixa, faz questão de nos introduzir aos cantos da casa. A história continua por entre desventuras e interlúdios, à semelhança do seu antecessor: Samuel Úria, Fernando Alvim e Carlos Afonso (Bondage/Este Senhor), em flash forward, interpretam o papel das vozes que ameaçam o protagonista em chamadas sem resposta, colaborando Mike El Nite e “Alferes Malheiro” (o conterrâneo Mr. Dolly) em “Interveniente Acidental” e “M0ita Fl0res”, duas faixas que apresentam as melhores barras do álbum.
Apesar de momentos brilhantes — são de destacar “Aparthotel Céu Azul” ou os constantes solos dignos de air guitar interpretados por Marco Duarte, guitarrista que colabora com o músico — a estética que Miramar Confidencial tenta replicar desvenda-se uma faca de dois gumes. Por um lado, os samples e matéria escolhida revelam-se, particularmente a nível internacional, um pouco gastos: num momento em que o revivalismo 90s satura a actualidade e em que a temática da nostalgia ficcionada é hoje assunto comum dos tentáculos que restam às correntes synthpop e vaporwave (sendo velhos favoritos os filmes de acção desse período para sampling), a produção de Miramar, apesar de funcional, acaba por não se destacar ou inovar. Por outro lado, as letras de David Bruno, desta feita destacadas face à instrumentação mais limpa e minimalista, apostam excessivamente na repetição lírica e negligenciam a possibilidade de resolução narrativa. “N gosto k m mentem” e “Serenata em Enxo1000” são faixas com potencial que acabam por ficar limitadas pela curta mensagem, quer em termos musicais como líricos.
Sendo o álbum apresentado em vídeo, fica também em suspenso o mistério das várias personagens secundárias que desfilam pelo ecrã nos interlúdios em formato casting, reflexo do potencial da backstory criada por David Bruno que acaba por não ter a sua correspondência em nenhuma das músicas. Vemos (e ouvimos) António Bandeiras, ex-marinheiro de Caxinas de pistola em riste que gosta de Vianetta e que lhe façam o comer — fio que se perde na história para nunca mais surgir. Este tipo de personagens passageiras não é incomum na obra de David Bruno, quer a solo como em Conjunto Corona, mas o forte peso dado à construção da mitologia deste projecto (que chega ao brilhante ponto de ser vendido sob a forma de DVD pirata gravado pelo próprio artista) torna este tipo de quebras mais gritantes e deixa-nos com um desejo ainda maior de uma finalidade ou razão de ser para toda a dispersão.
Miramar Confidencial é, não obstante e independentemente das suas falhas, um projecto com o cunho de David Bruno: estão presentes os pequenos momentos e detalhes que tornam única a sua obra — o “interveniente acidental”, sujeito jurídico presente na Legislação, o pequeno empresário que faz cocktails com FrutiGruta [marca de refrigerantes de Espinho cujo website segue uma estética deliciosamente semelhante à do artista], as referências à mítica discoteca Iodo e não esquecendo a local superstição em redor da capela do Senhor da Pedra. É uma obra em bruto — segue uma ideia, um visual, personagens em dispersão, capta um local num determinado tempo. Mas infelizmente, não nos leva mais longe que essa vaga impressão, nem acaba por chegar perto de se tornar nos filmes de acção que tanto idolatra.
Fica o desejo que, no futuro e com a criatividade que lhe conhecemos, chegue David Bruno ao âmago da sua obra e nos presenteie com a definitiva longa-metragem que todas as personagens de Gaia que ainda têm em casa mini-bares de canto merecem.