David Pinheiro Vicente: ‘Interessa-me o que tem a ver com o corpo e a maneira como se insere no espaço’

por Paulo Portugal,    6 Julho, 2018
David Pinheiro Vicente: ‘Interessa-me o que tem a ver com o corpo e a maneira como se insere no espaço’
David Pinheiro Vicente

O português David Pinheiro Vicente é um dos dez cineastas a seguir pelo programa deste ano do European Film Promotion – Future Frames, a decorrer no 53º Festival de Karlovy Vary (que decorre desde o dia 29 de Junho a 7 de Julho), precisamente nessa cidade termal na Boémia Oeste, parte ocidental da República Checa, a 130 quilómetros de Praga. Aí mostra ao mundo e aos produtores a sua curta Onde o Verão Vai (episódios da juventude), um filme que deu a este jovem cineasta, nascido da Ilha Terceira, de apenas 21 anos, um empurrão que começou logo no início do ano com a seleção do filme para a Berlinale Shorts, uma secção do Festival de Berlim, em concurso para o Urso de Ouro. Na mesma secção, aliás, onde estiveram também João Salaviza (com Russa) e João Viana (Madness), e até num júri em que participou Diogo Costa Amarante (o vencedor do Urso de Ouro no ano anterior, com Cidade Pequena).

Onde o Verão Vai (episódios da juventude)foi o trabalho com que David concluiu a Escola Superior de Teatro e Cinema e que tem uma inspiração assumida pelo próprio num conto de Emily Dickinson (The Bible is na Antique Volume), de resto como o próprio nos confessara ainda em Berlim. Foi a premissa nesse conto que o levou abordar nesta curta de 20 minutos, dividida em quatro partes, o momento de inocência em que desponta nos adolescentes uma certa curiosidade e disponibilidade sensual que parece deixar em aberto todas as possibilidades e que vai mesmo para além da própria orientação sexual.

São precisamente esses corpos adolescentes comprimidos uns contra os outros (atores quase todos da escola de Teatro) que vemos na abertura do filme, a viajar de carro num dia de verão. É esse calor e o contacto da pele que abrem para a vida num cenário quase bíblico. Um deles junto a outro vai puxando rapidamente a t-shirt com os dedos em pinça, deixando a dúvida se está apenas a refrescar-se ou a deixar o seu coração aos pulos como numa animação de Tex Avery. Seja como for, aqui o desejo assume-se como elemento mitológico, tal como a história de uma serpente que é contada em tom jocoso, e é captado de uma forma cândida e livre. Como se esta curta fosse o embrião de algo maior que está para nascer.

Entretanto, o filme já passou em vários festivais, Holanda, Espanha, Israel, Itália e talvez até, ainda não é certo, Ucrânia. Entretanto, também já o sabemos, David Pinheiro Vicente sabe bem para onde vai o seu verão, até porque continuará a preparar o seu guião para apresentar à candidatura de apoio do ICA para curtas-metragens.

Naturalmente, não quisemos deixar de estar presentes nesse evento de promoção do Diogo e dos seus colegas do Future Frames.

Depois no nosso encontro em Berlim, aqui estamos em Karlovy Vary. Podemos dizer que este teu verão está a tornar-se bastante interessante para ti. Como avalias esta viagem? O que se tem passado desde Berlim até aqui?
É fixe porque o filme tem passado em vários festivais, mas Karlovy Vary é dos maiores em que tenho estado, na escala de Berlim.

Estar na seleção do European Film Promotion – EFP Future Frames – também proporciona um acesso mais facilitado a este networking e acesso à indústria. Já sentiste isso?
É bom porque a secção é organizada para criarmos contactos. A mostra é feita com esse propósito e eles têm bastantes convidados para estarmos mais à vontade com as pessoas da indústria. E tivemos também uma masterclass direcionada para a industria e o que fazer o quê, como fazer co-produções, apresentar o filme em festivais, etc.

Já agora, a nova curta que estás a trabalhar irá na linha desta?
Acho que sim. É de certa forma baseado em algumas memórias do meu pai, abordando uma certa visão do campo e alguns aspetos da religião católica, como a ideia de sacrifícios de animais, como o cordeiro. Direta ou indiretamente terá sempre alguma ligação. Desde logo pela maneira como quero filmar. Interessa-me o que tem a ver com o corpo, de que maneira se insere no espaço, a ligação com os outros corpos entre si, algo que me interessava muito neste filme e quando estava ainda na escola. Acho que isso pode progredir.

Haverá também uma continuação de uma temática ‘queer’?
A mim nunca me interessou muito esse lado de rótulo marcado. Acho que existe esse aspeto, mas é algo que está mais ligado por seu eu a fazer e não tanto de querer por alguma agenda. Neste que passou fico contente que possa ter essa leitura, mas para mim é apenas uma que está integrada em outras. Mas gosto quando as pessoas falam nisso.

Gostava de voltar á ideia do teu pai, pois recordo-me que teve alguma influência da tua descoberta deste mundo do cinema, se não estou enganado?
Acho que tinhas perguntado como eu tinha começado e eu disse que na minha casa viam-se sempre imensos filmes. Os meus pais gostam imenso. E os meus pais incentivaram-me imenso a seguir para cinema. Eu até achava que poderia ser outra coisa. Disseram-se que deveria tentar já que era uma coisa que adorava tanto. Eu pensava o cinema como uma coisa um bocado inacessível. Quando vamos a estes festivais é que percebemos como é algo bem mais real e não um sonho inacessível.

Essa passagem pela zona rural, é algo que te é próximo a ti ou à tua família, ao teu crescimento?
É verdade, costumava ir todos os verões à terra do meu pai, uma aldeia no centro do país, na região de Castelo Branco. Chama-se Soalheira, é a aldeia do meu pai. Era um lugar onde me revoltava um pouco quando lá ia no verão e agora vêm-me histórias que são contadas dessa altura. E quando me ponho a pensar escrever alguma coisa, percebi que tinham a ver com ideias de histórias que ele contava, de religião e daquele meio muito duro, mas ao mesmo tempo muito belas à sua volta. Pensar nesta história ajuda-me também a relacionar-me com essas histórias.

A partir destas influências novas voltamos então à tua curta e à influência do conto da Emily Dickinson, de onde partiste. Onde há também, se não me engano, um lado também religioso.
Tem a ver com imagens de inspiração católica que são muito presentes na nossa cultura.

Tu és católico ou religioso?
Não, quer dizer, tive uma educação algo misturada, fui um bocado a todo o lado e tentei perceber. Vivendo em Portugal percebemos que isso existe um bocado. No caso da Dickinson tem a ver com esse poema. Aliás, a visão dela é muito própria. Uma coisa que falo muito desse poema é a ideia dos ‘lost boys’. Podemos ter uma ideia um pouco formatada desses textos, mas existem muitas interpretações. E essa é uma delas, são textos um pouco de pessoas à procura de um sentido.

Um bocado como no teu filme…
Sim. Ligou-se a partir daí e começou-se a ligar, talvez de maneira inconsciente, a outras imagens, como a questão da cobra e essa ideia do Paraíso. É um bocado a revisitar essas imagens icónicas e é esse jogo que conhecemos desses conceitos. E o significado que temos deles. Há aí um pouco de inocência perdida. Vi por exemplo aqui o filme da Alice Rohrwacher, o Lazzaro Felice, que adorei. E gosto por essa inocência que se vai abrindo.

Gosto muito da primeira imagem do filme, com aquele quadro carregado de corpos e membros, e que depois se abre para a natureza e para as possibilidades. Esse era um caminho que querias seguir à partida?
Era e também a forma como queria filmar. Algo que tinha definido à partida. E depois falei muito com a Joana (Silva Fernandes) a diretora de fotografia, porque queríamos fazer planos longos e numa estética um bocado ‘tableau’. Tínhamos também muita influência da fotografia, de tentar criar uma ideia, ou distância dessas fotografias. Na cena do carro nota-se esse desejo de dar atenção aos gestos, num sentido mais significante das coisas. E de criar esses quadros. Algo que acaba por dialogar com as próprias temáticas.

Podemos falar em algumas influências, pessoas ou filmes que estiveram para fazer este filme?
Claro. Tenho sempre de falar na Lucrecia Martel. Vi a masterclass dela no IndieLisboa e a retrospetiva dos filmes dela. Acho que é fenomenal. O Bresson também foi muito importante quando o descobri. Mas também outras pessoas, o Rohmer, a Sofia Coppola, o Visconti…

Quando vi o teu filme lembrei-me também do Ornitólogo, do João Pedro Rodrigues. Isso faz algum sentido?
Sim, faz. Eu gosto bastante dos filmes do João Pedro. Mas também do Manoel de Oliveira, do João Nicolau. Estes são agora aqueles que me lembro, mas também aqueles que retorno sempre.

Para o próximo vais seguir a mesma ideia estética?
Eu tenho o desejo de trabalhar mais as personagens, de ter um trabalho com os atores um pouco mais rico, mais profundo. Mas a forma de trabalhar e de fazer os enquadramentos é algo mais inconsciente, do meu gosto pessoal. Mas sinto esse desejo. Quando penso em comparação com o que fiz, gostava de trabalhar mais esse lado e de abordar mais o sentido de história. Porque quando fiz este filem estava mais interessado em outras coisas.

Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt

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