De novo, a educação

por Marta Vicente,    15 Julho, 2019
De novo, a educação
Ilustração de Ricardo Ladeira / CCA
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O estudo da Fundação Belmiro de Azevedo que, no passado dia 26 de junho, foi apresentado ao público, veio demostrar de que a forma o nosso sistema de ensino superior continua a gerar desigualdades e, no fundo, veio provar como a democratização do ensino continua a ser, em larga escala, um objetivo por alcançar. Como foi revelado, são os alunos de classes sociais mais favorecidas que frequentam os cursos com médias mais elevadas e, por outro lado, os cursos de médias inferiores, são frequentados pelos alunos mais pobres. Em termos numéricos, esta realidade traduz-se em 73,2% de alunos inscritos em Medicina cujos pais concluíram o ensino superior, em contraste com os 73% dos alunos que frequentam Enfermagem e cujos pais contam com qualificações inferiores – ensino secundário ou anterior.

As desigualdades sociais, aqui, associadas ao ensino superior, são reproduzidas por este, mas a sua origem é-lhe anterior. Por outras palavras, as desigualdades retratadas por este estudo são uma consequência daquelas que, desde início, a escola pública gera. Não preciso, sequer, de recorrer ao exemplo dos colégios, por um lado, porque acredito que a escola pública tem igual capacidade de formar excelentes alunos e, por outro, porque é dentro desta que as desigualdades se geram e, por isso, é aqui que precisamos de atuar.

Encostámo-nos demasiado à ideia de que, pela sua gratuidade, o sistema de ensino proporciona um igual acesso de oportunidades a todas as crianças e jovens em formação, que estas, mesmo partindo de backgrounds distintos, encontram na escola pública um bom nivelador das condições sociais e financeiras, que permitirá que os mais desfavorecidos alcancem o mesmo daqueles que nasceram com melhores condições. Esta ideia, base de qualquer sociedade democrática, foi encarada com tal convicção que nos esquecemos de que, sozinha, não é suficiente para parar a estagnação social. Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), no estudo Um Elevador Social Avariado – Como Promover a Mobilidade Social, divulgado há um ano atrás, Portugal ocupa a pior posição, entre os 35 países analisados, no que diz respeito à mobilidade social pela educação – o mesmo que dizer, segundo os analistas, que “as hipóteses de os jovens terem uma carreira de sucesso dependem fortemente das suas origens sócio-económicas e do capital humano dos pais.”

Para a criação das desigualdades sociais dentro da escola pública, são vários os fatores que contribuem. Por um lado, entre aqueles que estão, de forma direta, ligados a questões monetárias, é importante referir as explicações particulares e os centros de apoio ao estudo – solução que, cada vez mais, os pais recorrem desde os primeiros anos de ensino –; os materiais de estudo, como os livros de preparação de testes ou exames, os guias com a matéria dada, ou diversas plataformas online com exercícios ou aulas em formato vídeo; e, até, a possibilidade de possuir todo o material escolar necessário e em boas condições para ser utilizado. Para além disso, o dinheiro paga, ainda, as atividades extracurriculares, como o ensino da música ou a prática de um desporto, que ajudam ao desenvolvimento das crianças e dos jovens e que, ainda que não sejam sinónimo de um excelente aproveitamento escolar, dão, com toda a certeza, o seu contributo. É o caso, também, do acesso e incentivo ao consumo de cultura, como as idas aos museus ou os livros que se tem à disponibilidade em casa.

Por outro lado, a segregação que existe entre as escolas públicas e dentro das mesmas é, ela própria, um entrave ao funcionamento da mobilidade social e impede, desde o início, que falemos de igualdade no acesso de oportunidades. Esta representa, na verdade, um dos problemas base de muitos outros e que, raramente, é discutido. Quando falamos em abandono escolar precoce, em sub-representação de raças e etnias nas faculdades, quando associamos condições económicas favoráveis a um bom desempenho escolar, ou discutimos o facto de sermos dos países europeus com taxas mais baixas de estudantes no ensino superior, esquecemo-nos de como, de forma mais ou menos explícita, crianças e jovens de diferentes origens socio-económicas, raças e etnias são segregados dentro do próprio sistema. Por outras palavras, o jovem que nasceu em Chelas não irá estudar na mesma escola pública daquele que nasceu em Alvalade.

A questão não é meramente geográfica nem limitada às grandes cidades. Na pequena cidade onde nasci e estudei, na impossibilidade de criar escolas de ‘pobres’ e de ‘ricos’ por existirem, destinadas ao ensino secundário, apenas duas, a distinção fazia-se entre a turma dos ‘bons alunos’, denominada por A, e a dos ‘maus alunos’, tratada por uma qualquer letra do abecedário posterior às outras. Aprender, bem como ensinar, numa turma marcada por mau comportamento, reprovações e más notas é, com certeza, mais difícil do que o seu contrário, e o mesmo acontece se compararmos o processo entre uma escola de um bairro social, na periferia de Lisboa, e outra localizada no centro. Vítimas da segregação da cidade, da sua geografia ou da vontade das escolas em rotular alunos com base na sua origem e desempenho, a verdade é que não podemos aspirar a mudanças maiores se esta não for cumprida.

Regressando ao estudo da Fundação Belmiro de Azevedo, e apesar de ter defendido que as desigualdades que este retrata têm a sua origem na escola pública, os custos associados ao ensino superior e a falta de apoios aos estudantes para a frequência do mesmo, impedem que as desigualdades, ao alcançar esta etapa, sejam travadas ou reduzidas. Uma das conclusões do estudo é que os institutos politécnicos são, na sua maioria e em comparação com as universidades, frequentados pelos alunos mais pobres. Considerando o número elevado de politécnicos que existem, com uma distribuição geográfica mais abrangente e descentralizada que as universidades, não é de espantar que, ao ter de pagar anualmente 856€ (valor que entra em vigor no próximo ano letivo, sendo, até este ano, de 1063€) para tirar um curso superior, um estudante com fracas condições socio-económicas acabe por ficar na sua cidade a estudar, ou perto dela, evitando despesas de alojamento, transporte ou alimentação.

Por outro lado, estes dados são reflexo de um outro problema: a desertificação do interior do país e a incapacidade de o governo combater a centralização do ensino associado às grandes cidades, que retira valor às universidades periféricas e que faz com que quem acabe a estudar nelas sejam aqueles que não possuem rendimentos ou notas suficientes para o fazerem em Lisboa ou no Porto. A conclusão da Fundação Belmiro de Azevedo, que apresenta o curso de Medicina da Universidade da Beira Interior como a exceção por ser o único do país onde apenas 20% dos pais dos estudantes têm formação superior, acaba por ser uma prova desta realidade.

Estudos desta natureza precisam de começar a ser levados mais a sério. É preciso lutar por melhores condições de acesso ao ensino superior e por mais apoios à frequência deste, mas enquanto ignorarmos os problemas da nossa escola pública é provável que as mudanças implementadas não alcancem os resultados esperados.

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