De “O Silêncio das Mulheres”, de Pat Barker, irrompe a voz de Briseida

por Mário Rufino,    23 Julho, 2020
De “O Silêncio das Mulheres”, de Pat Barker, irrompe a voz de Briseida
Capa do livro
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Todas as histórias têm várias vozes. E cada voz é uma perspectiva diferente. Ainda que por um traço, um relance, um tom menos ou mais moderado, cada ponto de vista soma mais uma tonalidade.
Demasiadas vezes vemos a voz feminina como o outro lado, uma outra versão, insidiosamente subalterna.
Pat Barker traz-nos Briseida, rainha de Linersso, troféu de Aquiles após a conquista de Troia e da cidade de Briseida.

A Ilíada é o primeiro livro da literatura europeia, segundo Frederico Lourenço, e nenhum outro conseguiu superá-lo.
“Ler a Ilíada é reclamarmos o lugar que por herança nos cabe no processo de transmissão da cultura ocidental: cada novo leitor acrescenta mais uma etapa, ele mesmo um novo elo”, escreveu Frederico Lourenço no introito à sua tradução de Ilíada.

Hoje, submerge da história o poder da mulher. E é essa actualização que leva a autora a dar importância, em “O Silêncio das Mulheres” (Quetzal; trad. Tânia Ganho), a quem foi relegada e tida como inferior.

Capa do livro “O Silêncio das Mulheres”, de Pat Barker

Onde o olhar não incidiu, eu vou apontar e contar. Assim deve ter pensado Pat Barker (n.1943) ao iluminar os pontos escuros da epopeia de Homero. Briseida conta o não visto ou o relegado para um plano subalterno à masculinidade do mundo de Aquiles; interessam-lhe os despojos, a sobrevivência dos vencidos, a humanidade escondida pelo guerreiro, a humilhação das mulheres. A visão não é de quem grita vitória sobre as cinzas das cidades conquistadas. O olhar do leitor é o olhar de quem viu a cidade a arder, as filhas violadas, os filhos e os maridos mortos, o seu corpo partilhado como um prémio menos valioso que um óbolo.

As epopeias de Homero têm raízes com muitas centenas de anos no imaginário dos leitores. Se resistem ao desgaste do tempo é também por se fundarem em arquétipos da psique humana. Enfrentar esse património e arriscar dar-lhe novos prismas é coisa de loucos e trabalho para poucos.
Pat Barker não se amedrontou. Briseida dá-se a conhecer e dá a conhecer um Aquiles sem armadura, sem as defesas que sustentam a ferocidade trucidante e impiedosa.

“Como é que separamos a beleza do tigre da sua ferocidade? Ou a elegância de uma chita da celeridade do seu ataque? Eis Aquiles: a beleza e o terror constituíam os dois lados da mesma moeda”.

A actualização contemporânea do texto intemporal de Homero dotou a narrativa de feminismo e mudou a forma da poesia para a prosa. Há um certo desvio do arquétipo, pois é uma mulher a personagem forte; é ela que trata de Ulisses, é dela o pensamento que seguimos (não exclusivamente). No entanto, a masculinidade de Ulisses é demasiado forte, magnética, para a narradora totalmente se emancipar e criar uma história sua, abandonando o eixo de “Ilíada”, ser núcleo em vez de satélite.

Barker liga a sua prosa à poesia de Homero, trocando importâncias. Temos Pátroclo, Ájax; temos Páris e Agamémnon, mas temo-los de acordo com a perspectiva de uma mulher. São figuras secundárias numa realidade até agora subalterna no canto sobre a conquista de Troia. Não é por acaso que Troia não é a cidade primordial em “O Silêncio das Mulheres”. Será Linersso, cidade próxima.

Conhecer muito bem o texto de partida e complicar pouco a forma de o recontar. É um dos grandes méritos de Pat Barker (vencedora do Booker Prize).
Uma belíssima história capaz de momentos arrebatadores numa voz credível que enleia tradição e contemporaneidade. Um triunfo literário de Pat Barker.

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