De que é feita a rádio? Pilhas de ouvintes

por Gonçalo Costa Martins,    29 Abril, 2025
De que é feita a rádio? Pilhas de ouvintes

O sol ontem não estava para brincadeiras e acabei com um escaldão. Podia ter usado protetor solar? Nem sequer o trouxe. Não me passou pela cabeça que seria útil, porque também não me passou pela cabeça o dia de ontem — acho que falo por toda a gente.

A loucura começou junto ao aeroporto de Lisboa, na Rotunda do Relógio. Pedem-me um direto no emaranhado de carros, atiçados pela falta de eletricidade nos semáforos. Abro a janela do TVDE, o vento sopra na minha cara e resumo, num minuto, o que vejo.

Foi apenas o início do escaldão: cresceu até depois das 17 horas. Passei pela Cidade Universitária, pelo Hospital de Santa Maria, e daqui ao Campo Grande foram sensivelmente dois quilómetros.

Apanhei histórias pelo caminho: as duas estudantes que levaram atum, batata frita e mais de 10 garrafas pequenas de água “apenas para um dia”, a senhora que não falou comigo porque “isto não está a correr bem” ou os seis jovens descontraídos com toalhas a conviver, rodeados pelo trânsito habitual do Campo Grande, mais os autocarros sobrelotados.

O dito escaldão foi um alerta da minha mãe ao chegar a casa. Desvalorizei, mas vi depois que era real ao ver-me ao espelho e quando voltei esta terça à redação.

Mas a voz não apanha escaldões. Espalha-se pelos carros, mais veloz que o trânsito, e alimenta quem está com fome de informação. E quando não há carros, as vozes continuam espalhadas, apenas é preciso apanhá-las.

“As pessoas vinham de todo o lado, de Lisboa, para comprar rádios a pilhas”, disse à Renascença o dono de uma loja de Moscavide, em Loures. “Estamos à espera de que venham mais”, contou uma jovem ao Jornal de Notícias, numa longa fila à porta de uma loja chinesa, em Benfica, Lisboa.

Sem números de audiências, arrisco dizer: os ouvintes na rádio dispararam porque era difícil chegar à televisão. O Governo privilegiou a rádio. Pedro Nuno Santos, do PS, veio dizer que a Proteção Civil devia ter falado de hora a hora na rádio. Mas ela não serve só para emergências. Está cá todos os dias. Sou suspeito, mas talvez mais gente conheça agora a magia da rádio, do poder e da audiência que uma voz pode alcançar.

Acordado noite fora, a reforçar a madrugada, o jornalista Miguel Soares falou de vizinhos que se juntaram numa “escuta comunitária” da rádio. “Alguns despertam pela primeira vez para a importância do serviço público, outros redescobrem-no”.

Importou poupar geradores e informar a maior audiência possível: a Antena 1, a Antena 2, a Antena 3, a RDP África, a RDP Internacional, a Antena 1 Madeira e a Antena 1 Açores transmitiram 15 horas em simultâneo. Apoiados por animadores, produtores e técnicos, espalhados de norte a sul do país, os jornalistas da rádio pública contaram o que viam e o que ouviam.

Desinvestir numa rede de jornalistas é dar menos vozes ao país. São vozes que apanham menos rádios, também menos televisões e menos jornais, porque as vozes podem fazer eco.

Hoje o Metro de Lisboa abriu mais tarde. Perante a falta de informação, em Sete Rios, depois das 6h30, os passageiros vinham perguntar-me o que se passava. Fixavam até os olhos em mim, por breves segundos, quando entrava em direto a contar que ainda não havia hora para reabrir. É possível pôr olhos numa voz — esteja ou não o seu corpo escaldado.

Seja a Antena 1, a TSF, a Renascença ou o Observador, a rádio tem audiência. Está em crescimento (até porque a era digital já foi abraçada) e vale a pena contar com ela para partilhar histórias e notícias. Quem não acredita nisto desconhece as pilhas de ouvintes que a rádio tem.

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