De que serve ter os cavaleiros da Távola Redonda na Lisboa do séc. XXI?

por Miguel Fernandes Duarte,    20 Janeiro, 2018
De que serve ter os cavaleiros da Távola Redonda na Lisboa do séc. XXI?
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Como seria se, na sua demanda pelo Santo Graal, único objecto capaz de devolver a paz às terras do Rei Artur, os cavaleiros da Távola Redonda, como Lancelot e Perceval, estivessem na Lisboa do séc. XXI? Esta é a premissa de Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa, o mais recente livro de Alexandre Andrade, editado ainda em 2017 pela Relógio d’Água. Nele, dois planos são sobrepostos; o primeiro, o de dois empregados de uma esplanada no Parque Eduardo VII que constantemente dialogam acerca das desventuras amorosas de um deles, que vê esfriar a sua relação com a namorada empregada no Almada Fórum e que vive em Corroios, não sabendo como resolver o assunto. O segundo, o do diálogo entre dois clientes anónimos que, todos os dias à mesma hora, qualquer que seja a meteorologia, se reúnem naquela esplanada pedindo sempre dois cafés e duas águas tónicas, uma com gelo e outra sem gelo. Ora, é na conversa entre estes dois clientes que entra a “Matéria da Bretanha”, e as lendas a si associadas sobre a corte do Rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda.

Um dos clientes pede ao outro que imagine a localização destes heróis romanescos na Lisboa do séc. XXI, mas este jogo literário que Alexandre Andrade tenta fazer não é, em ultimo caso, conseguido, com a sobreposição dos planos a parecer sempre forçada, o autor pedindo ao leitor uma espécie de salto de fé para acreditar que o que conta se passa em Lisboa, ao mesmo tempo que parcamente refere acções tidas pelos mesmos em Lisboa, limitando-se a cidade a figurar praticamente enquanto mapa e itinerário. É precisamente nessa narração que acontece outro dos grandes problemas do livro: a forma essencialmente desinteressante como são narradas as aventuras e desventuras dos vários e variados cavaleiros da Távola Redonda presentes em Lisboa. Para alguém não familiar com as lendas arturianas, esta contextualização acaba por deixar completamente submerso quem lê, com a quantidade de nomes e coisas a acontecer ao mesmo tempo, histórias que Alexandre Andrade encarrila a toda a velocidade, não dando nem espaço ao leitor para compreender na sua essência o que se passa com cada um dos cavaleiros, nem trazendo ao leitor qualquer relação com os seus feitos ou destinos. A certa altura, aliás, qualquer cavaleiro parecerá o mesmo que o anterior, numa sobreposição de genealogias que, com nomes da idade média e sem o devido espaço para a cimentação, deixa o leitor completamente desapegado aos feitos destes valorosos heróis.

Alexandre Andrade

Mas se este livro é, portanto, algo que necessita de um conhecimento prévio por parte do leitor sobre os mitos arturianos para que não se perca na avalanche de informação, ao mesmo tempo acabará certamente por enfadar quem à partida já o tenha, o global do livro amontoando a muito pouco além de um resumo (em velocidade elevada) dos mesmos.

Tornado praticamente resumo das lendas, Descrição Guerreira e Amorosa da Cidade de Lisboa acaba por dar muito menos do que a sua premissa poderia prometer, já que a sobreposição com Lisboa acaba praticamente por ser posta de parte, apenas para ser resgatada numa união dos dois planos narrativos no final, com propósito simbólico também ele duvidoso, ainda que de toque cómico.

Não se percebe se a ideia de Alexandre Andrade é, particularizando a acção à cidade de Lisboa, universalizar as lendas arturianas, sugerindo que podem passar-se em qualquer parte e não apenas na pequena e grande bretanha, ou apenas trazer para o século XXI este tipo de narrativas romanescas que aos olhos de hoje soam despropositadas e excessivamente heroicas e honrosas para algo que acaba por ser essencialmente de uma violência tremenda, uma sucessão de mostras de honra e duelos que, quase sempre, acabam bem para os heróis e mal para os que a eles se opõem. Serão os tempos de hoje assim tão diferentes, poderiam os heróis das lendas arturianas ser cada um de nós? É difícil dizer, e o livro também não oferece resposta.

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