Dêem-nos alguma coisa em que acreditar
Por vezes, as melhores ideias surgem nos momentos em que paramos. Fumar um cigarro enquanto contemplamos a natureza, pode ser uma hipótese de reconciliação com aquilo que ainda resta em nós de natural, mas principalmente, com aquilo que resta em nós de espiritual. É verdade que muitas vezes é o corpo quem pede um cigarro, mas quem retira os verdadeiros frutos desse momento é o espírito. Fumar o cigarro pensativo, como já nos tinha falado Fernando Pessoa.
Hoje o meu espírito fumou esse cigarro pensativo. Enquanto ele fumava, iam-me chegando pensamentos sobre a nossa realidade política actual, sobre como justificar a presença de um partido de extrema-direita na nossa realidade política. Como explicar essa presença? Como justificar esse lamentável ganho de expressão de uma força cuja única bandeira que tem potência para levantar é a do ódio e da podridão moral?
Parece-me inegável que a nossa sociedade se organiza de forma estratificada. Podemos pensar nela como várias camadas que se vão sobrepondo, umas em cima das outras. Quer dizer que algumas camadas da sociedade vivem soterradas nos escombros que vão sendo lançados desde um lugar mais elevado. Esses estilhaços recaem sobre as suas vidas por uma espécie fenómeno que, ilusoriamente, é interpretado como uma lei da física, como a lei da gravidade. Essas pessoas que habitam sob os escombros são obrigadas a viver segundo uma lógica trágica: é a sua própria força de trabalho que gera as suas próprias ruínas. E, quanto mais a vendem, com mais força sentem o mundo inteiro a desabar sobre as suas cabeças. Ora, o que fica evidente é apenas uma coisa bem simples: o meu trabalho é sinónimo de sofrimento. E, como sabemos, todo o sofrimento tem um instinto imediato para exigir culpados, tal como tem dentro de si um secreto desejo de universalização — terá o sentimento de inveja outro motor? Se eu sofro, e interpreto isso como uma lei da física que recai sobre esta parte do mundo onde habito, então, neste submundo, aquele que ouse ficar parado só merece o mal que lhe falta sentir.
Mas, nesta camada subterrânea, a moral tem peso. Onde o sofrimento faz casa, todo o coração arde. Neste território, algures sob os escombros do progresso, a maldade aparece como um momento trágico da natureza, como reverso de uma dilaceração infinitamente sentida na pele. E só assim se percebe que todo o ódio que que se vai gerando dentro dos que são remetidos cedo demais para o fundo da terra precise ser canalizado por uma via alienante e colocado a cargo de alguém de coração exangue; é uma tarefa para um homem abstracto, onde o coração deixou de bater; para alguém que prometa o milagre de lhes retirar o peso insuportável que toda a história continua a deixar-lhes em cima das costas.
A outra tragédia está em olhar para este avesso de um messias que se faz passar por messias como um salvador. Olhar para este infra-homem como uma espécie de Deus redentor, esquecendo que ele não é mais do que um espelho que reflecte, para o mesmo lugar, todo o ódio que nele é projectado. Então há uma tragédia ao quadrado: não bastava eu achar que estou condenado a ser força motriz da minha própria desgraça, ainda vejo um salvador no homem que mais quer que eu nela permaneça? É como se todas as manhãs apenas nos restasse beijar a mão ao homem que durante a noite nos vai roubando a vida devagar. É como colocar flores nas mesmas mãos sangrentas que largam uma guilhotina sobre o nosso pescoço. Acredita-se num homem, e vota-se num homem, que quer destruir as nossas vidas como se fosse a nossa desgraça.
Mas, o céu continua aí, indestrutível. Nele vemos as estrelas que resistem, que permanecem contidas com a força dos que sucumbiram às mãos de todas as formas de fascismo, as mais e as menos dissimuladas. Só nesse céu se preserva a certeza desse dia em que a força de trabalho que, hoje, gera as suas próprias ruínas se transformará numa raiva, que não será mais autoprojectada, mas será uma pura força de justiça e de libertação. Como se, de repente, neste habitat social humano, a natureza nos ensinasse de novo quem são as presas e os predadores.
Se lhe chamam utopia? Na verdade, não sei que nome lhe chamar. Mas, parafraseando a letra de uma das minhas músicas favoritas: dentro de mim existe apenas um som gentil e claro; muito perto, ainda que longe; o grito de uma borboleta cujo bater das asas, desde o futuro, anuncia a redenção. Nós queremos o mundo e Nós queremo-lo, Agora…
Crónica de Cláudio Azevedo
O Claúdio é Professor de Filosofia e Crítico de Cinema no blogue “Cinema Sétima Arte”.