“Desficcionar” a ficção
Cada vez mais nos rodeamos de pessoas que pensam como nós. Parece que detestamos a crítica e a opinião contrária. As redes sociais vieram contribuir para pensarmos em coro, partilharmos as mesmíssimas opiniões e gostos. Muitas vezes reagindo com sarcasmo e violência a quem manifesta uma opinião diferente, respondendo sem capacidade de escuta e respeito pelos outros.
As redes sociais transformaram-se num recinto global onde toda a gente diz o mesmo e se grita com quem discorda connosco. Parece-me que existe um perigo óbvio em pensarmos massivamente.
Em primeiro lugar, não desenvolvemos um sentido crítico pessoal, longe da iconoclastia dos ecrãs e, em segundo lugar, não evoluímos com visões contrárias às nossas que, mesmo que não nos convençam, podem ser úteis para o desenvolvimento da nossa própria prática de argumentação. Quero conhecer e ouvir pessoas com ideias diferentes, que me contradigam de um modo fértil. Fazer parte de um coro é bom, mas conhecer outros coros e solistas contribuirá naturalmente para o enriquecimento de todos. E isto aplica-se em qualquer área das nossas vidas, seja social, cultural, familiar, etc.
Falemos no caso da ficção literária, por exemplo. Nos últimos anos, temos assistido à higienização de certas obras célebres. Alguns autores tiveram as suas obras corrigidas por grandes editoras: Agatha Christie, Roald Dahl, Ian Fleming, entre outros, têm livros em que o vocabulário foi alterado para algo considerado mais correcto. Sinto que erradicar ou amenizar o discurso de personagens que sejam, por exemplo, racistas, homofóbicas, xenófobas ou com qualquer outra característica que seja reprovável na vida em sociedade, não é um gesto aceitável.
A ficção, ou qualquer outro acto artístico ou criativo, quanto a mim, deve ser livre e expressar-se até de forma a alertar o mundo de que estas pessoas, e não as personagens, existem no mundo real. Obviamente devemos censurar e condenar alguém que publicamente manifeste uma opinião xenófoba, racista ou com qualquer outro tipo de ódio e preconceito sobre um determinado grupo de pessoas, mas fazer essa exprobração em personagens ficcionais, algumas delas impressas há séculos, parece-me completamente descabido.
Reescrever personagens ficcionais e os seus discursos à luz dos nossos tempos é querer “desficcionar” a própria ficção, que perde assim a capacidade de ser outra coisa além do discurso aceitável vigente. Penso que o fenómeno a que assistimos na literatura está intimamente ligado a outros acontecimentos de uniformização de pensamento, como referi no início do texto. Há uma força global, massiva, que nos leva a pensar de igual modo, sem espaço para diferenças ou nuances. Parece que voltámos a um tempo maniqueísta, entre o bem e o mal, ou, como num tabuleiro de xadrez, nos movimentamos em apenas duas cores: preto e branco.