Deus, protege-nos do veneno da cobra, dos dentes do tigre e da vingança dos afegãos

por Cronista convidado,    3 Setembro, 2021
Deus, protege-nos do veneno da cobra, dos dentes do tigre e da vingança dos afegãos
Cabul, Afeganistão / Fotografia de Mohammad Rahmani – Unsplash
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A História da fotografia não estaria hoje completa se não incluísse o retrato que foi capa do mês de Junho da National Geographic de 1985. Descobri-o pela primeira vez no manual escolar da disciplina de História. Foi através dele, do retrato de uma menina, que ouvi falar, também pela primeira vez, no Afeganistão. Penso que, na altura, não saberia sequer identificá-lo no mapa mas, pelo menos, passei a aperceber-me da existência do país. Lembro-me de ter criado empatia com a menina afegã a partir do momento em que fixei os seus olhos verdes expressivos. Segundo a legenda, o olhar de Sharbat Gula mostrava o medo da guerra que já lhe tinha levado os pais e que a tinha feito chegar a um campo de refugiados no Paquistão. É impossível não nos deixarmos tocar pelo seu retrato e pela sua história, e não sermos levados a julgar e a incriminar os alegados responsáveis pelo facto de a pobre menina  órfã ser forçada a deixar a sua casa. Steve McCurry, repórter e autor do retrato, tinha sido enviado pela revista National Geographic para o Afeganistão para fotografar a história dos refugiados que deixavam o Afeganistão devido à guerra soviética. O fotógrafo americano acabou por descobrir o rosto que acabaria por comover e sensibilizar milhões de pessoas no mundo para a questão da imigração e da crise dos refugiados. 

Mais do que divulgar a fotografia, importa sobretudo revelar o contexto em que a mesma foi feita. Importa revelar que Steve McCurry visitava um campo de refugiados entre o Afeganistão e o Paquistão quando descobriu os olhos verdes de Sharbat Gula, na altura com doze anos, por entre um grupo de crianças afegãs numa sala de aulas improvisada. Importa revelar que o fotógrafo aproximou-se da criança e que a começou a fotografar sem que lhe tivesse sido concedida autorização para tal. Importa revelar que Sharbat não estava a usar burca mas que, educada pelos padrões da tradição da etnia pashtun, se sentiu perturbada e incomodada ao ser fotografada com o rosto descoberto. Importa revelar que a menina tentou cobrir o rosto (existe até uma outra fotografia que o prova) mas foi desaconselhada a fazê-lo. Importa revelar que a menina, que vive de acordo com um conjunto de regras que proíbem certas coisas que podem parecer normais para nós ocidentais, não pode nunca estar numa divisão com um homem que não é um membro da sua família, não pode nunca estabelecer contacto visual ou mostrar o rosto, não pode nunca permitir que lhe tirem fotografias e muito menos que essas fotografias sejam divulgadas. Importa revelar que o medo que os seus olhos refletiam não era da guerra imposta pelo regime soviético, como a legenda tão bem sugere, mas do próprio fotógrafo, o homem que ela não conhecia mas que a forçou a posar contra a sua vontade e independentemente das consequências que isso lhe pudesse trazer. 

Segundo o tal manual de História, a guerra do Afeganistão, da qual fugiu a menina afegã, terá iniciado em dezembro de 1979, quando a União Soviética se envolveu militarmente para apoiar o regime comunista que vigorava, a República Democrática do Afeganistão, contra grupos de guerrilheiros mujahedin de diversas nacionalidades que queriam derrubar o regime e instaurar o islamismo. Estes fundamentalistas revolucionários foram apoiados  financeiramente e munidos de armas pelos Estados Unidos da América, com o objetivo de conter o imperialismo da União Soviética durante a Guerra Fria. Em maio de 1988, um ano antes do término da guerra que foi o princípio do fim para a União Soviética, o cinema americano estreava o terceiro filme da saga Rambo, que colocava o herói americano John Rambo a combater ao lado dos mujahedin para resgatar o coronel americano que havia sido  capturado pelos impiedosos militares russos. A história não é imparcial, como não são imparciais todas as histórias que nos colocam a nós, como espectadores, a defender a causa do herói americano sem que nos sejam apresentadas e explicadas as razões da disputa. Depois de uma década de mortes de ambas as partes, os militares russos recuam e os fundamentalistas radicais talibãs (uma vez mais digo, apoiados pelos EUA) assumem o poder  do Afeganistão. Com a retirada dos russos, retiram-se também os americanos, vencedores da batalha que travavam contra o domínio soviético. 

Até 11 de Setembro de 2001, o terceiro filme de Rambo era dedicado “aos bravos combatentes mujahedin do Afeganistão”. Quando a Al-Qaeda desviou quatro aviões comerciais para destruir os símbolos económicos, militares e políticos dos Estados Unidos, a dedicatória do filme foi alterada instantaneamente de “bravos combatentes mujahedin” para “povo nobre do Afeganistão”. Os EUA a contarem a história ao seu jeito e a distanciar-se daqueles que em tempos apoiaram. Isto porque, afinal de contas, a Al-Qaeda, organização terrorista responsável pela destruição das torres gémeas em Nova Iorque, foi fundada exatamente no final da guerra do Afeganistão pelos mesmos guerreiros santos (mujahedin) que tinham sido apoiados pelos EUA durante a tal guerra que dizimou os pais da menina afegã. Após o atentado, o inquilino da Casa Branca da altura, George W. Bush, deu início a uma segunda guerra no Afeganistão com o objetivo de capturar Osama Bin Laden, o líder da Al-Qaeda. 

Em 2003 Khalid Sheikh Mohammed, arquiteto do atentado do 11 de Setembro foi capturado e levado para Guantánamo, onde ainda hoje permanece. Já Osama Bin Laden foi capturado no Paquistão e assassinado em 2011 pelas tropas americanas. Mas apesar de cumprido o objetivo pelo qual os EUA tinham invadido o Afeganistão (a captura dos responsáveis pelo atentado de 11 de Setembro), a ocupação do país continuou, embora tivessem sido retiradas algumas das suas tropas, segundo ordens do novo inquilino da Casa Branca, Barack Obama, como uma tentativa de reestruturar o Afeganistão segundo a forma de governo ocidental. Contabilizaram-se 20 anos desde a invasão do Afeganistão pelos EUA e a retirada agora em  2021 das tropas americanas. Cabul não aguentou nem uma semana entre essa retirada e a tomada do poder pelos guerreiros talibãs. 

Há cerca de uma semana ouvi num podcast um humorista português comparar a relação entre EUA/Afeganistão à imagem de um pai à beira de água a olhar pelo filho a entrar no mar. Durante os últimos 10 anos o Afeganistão andou de braçadeiras, e sempre apoiado pelos EUA, na tentativa de estabelecer uma organização política baseada na democracia ocidental, com a introdução de eleições livres e a criação de partidos políticos. Porém, chega-se agora à conclusão que esses 10 anos de reestruturação foram em vão. Ao mesmo tempo, também os talibãs se fortaleceram e aproveitaram o número cada vez mais reduzido de militares americanos para irem conquistando cidades até ao destino final de Cabul. A razão para a crise, segundo o humorista, foi a de que o pai não soube sair. Talvez se o pai se tivesse empenhado e demorado um pouco mais, com uma saída gradual e progressiva, o filho não  se tivesse afogado.  

O Afeganistão, sem braçadeiras, parece agora ter mergulhado em águas profundas. Com os Estados Unidos fora de jogo, uma nova geração de talibãs toma agora conta de um país cuja fortuna está avaliada em cerca de 3 trilhões de dólares em recursos minerais. Muitos estão preocupados com a possibilidade de uma nova vaga de atentados no ocidente como os que aconteceram anteriormente, outros com a retirada dos direitos que as mulheres afegãs já  haviam alcançado. Outros referem ainda que desta vez os talibãs estão mais preocupados com o poder económico e que a sua prioridade é controlar as minas pouco exploradas do país, para que países como a China, a Índia ou o Paquistão não se lembrem de tentar a sua sorte. Qualquer que seja o destino do Afeganistão, uma expressão é certa ouvir-se da boca dos seus invasores: “Deus, protege-nos do veneno da cobra, dos dentes do tigre e da  vingança dos afegãos”.

Crónica de Mónica Mota
A Mónica tem 30 anos e é estagiária na equipa de Media e Comunicação do gabinete do Presidente do Parlamento Europeu.

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