Devolução de 750 obras de artistas negros ao Brasil preserva memória da diáspora africana
A restituição de 750 obras de artistas afro-brasileiros, por duas colecionadoras da América do Norte, é fundamental para a preservação da memória da diáspora africana no Brasil, disse à agência Lusa a diretora do Museu da Cultura Afro-Brasileira.
Este museu, localizado no estado da Baía, cujo acervo valoriza aspetos da cultura brasileira de matriz africana, anunciou em setembro que vai receber uma doação de 750 obras de artistas afro-brasileiros, na maioria produzidas entre as décadas de 1960 e 1990, que estavam há mais de 30 anos nos Estados Unidos e no Canadá.
Em entrevista à agência Lusa, a diretora do Museu da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), Jamile Coelho, disse que o repatriamento dessas obras segue uma tendência global e tem conexão direta com a devolução do manto Tupinamba ao Brasil, artefacto sagrado com significado espiritual para os povos indígenas brasileiros, que regressou ao país sul-americano em setembro passado, vindo da Dinamarca, onde se encontrava desde 1689.
“O Brasil é um dos países que tem muitas obras [e bens culturais retirados, que estão] fora do país. Houve uma repatriação recente [de acervo] ao Museu de Paleontologia do Ceará – 998 peças que estavam na Europa foram devolvidas – e houve também uma devolução ao Museu Nacional dos Povos Indígenas, com 583 peças”, que tinham sido “tiradas num contexto de roubo”, disse a diretora do Muncab.
A coleção doada agora ao acervo do museu ‘baiano’ é composta por esculturas talhadas em ferro e madeira, pinturas, gravuras e objetos religiosos e folclóricos, entre outras peças, que foram compradas e levadas para o exterior por duas colecionadoras que estavam investigando artes não europeias, quando um amigo as convidou para o uma viagem à Baía, na década de 1990.
Jamile Coelho explicou que as peças devem chegar ao museu até o fim do primeiro semestre de 2025, já que neste momento a instituição avalia as condições necessárias para guardar o acervo e trabalha em parceria com o Governo brasileiro para resolver questões logísticas a serem resolvidas antes do envio das obras, que ainda estão nos Estados Unidos.
A diretora do Muncab garantiu à Lusa que, até à data, esta é a maior doação privada de colecionadores estrangeiros ao Brasil e lembrou que, diferentemente do manto Tupinamba, as obras foram compradas pelas colecionadoras e não retiradas à força do país.
“Acho que Barbara Cervenka e Marion Jackson [colecionadoras que compraram as obras doadas ao museu] têm consciência da importância desse material, sobretudo para a Baía já que alguns artistas já são mortos, outros não estão produzindo mais naquela materialidade”, disse a especialista.
“É muito importante que as pessoas tomem consciência da importância da devolução dessas obras para os países de origem. Elas, como colecionadoras, perceberam a importância da devolução desses acervos para o Brasil e para a Baía, e escolheram o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, para os receber”, acrescentou.
A Baía é considerada o centro da cultura afro-brasileira no Brasil, com a sua culinária, religiosidade e arte profundamente influenciadas pelos costumes iorubás.
Cerca de 80% da população deste estado brasileiro tem ascendência africana, formando o maior contingente urbano do mundo de população negra fora da África.
As obras que serão devolvidas ao Brasil foram classificadas como arte popular. Entre os destaques estão trabalhos de ferro assinados por José Adário, esculturas em madeira de Celestino Gama da Silva, ‘panôs’ da designer Goya Lopes e pinturas do artista plástico J. Cunha.
“Temos, por exemplo, nessa coleção, obras do José Adário, que é um dos últimos ferreiros da Baía, que está produzindo ainda, mas está com quase 80 anos. Tem obras de um artista falecido, que é o Babalu. É um panorama da arte afro-brasileira, sobretudo no século XX”, apontou a diretora do Muncab.
A especialista revelou também que esse acervo deve circular pelo Brasil e pode, inclusive, ser exibido em Portugal.
“Acho que é importante fazer esse acervo circular pelo mundo, por Portugal, por países de língua portuguesa, porque precisamos de criar diálogos e caminhos de diálogo sobre essa diáspora africana”, defendeu Jamile Coelho.
“A construção da identidade do Brasil foi formada a partir dessa diáspora negra. Então, a gente não consegue, inclusive, discutir o que é o Brasil, o que é cultura brasileira, se não falar da diáspora negra”, concluiu.