Devolver a Universidade à esfera pública

por Luís Monteiro,    20 Fevereiro, 2024
Devolver a Universidade à esfera pública
Fotografia via Freepik
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No final de 2023, foi conhecido o relatório da Comissão Independente para a Avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). Apesar da lei em causa ter criado o dever de revisão passados cinco anos da sua aprovação, que aconteceu em 2007, a verdade é que foram necessários quinze anos para tal acontecer. Quinze anos onde se amordaçou a democracia dentro das universidades e politécnicos, se criou um ambiente de impunidade e altamente verticalizado, se promoveu a precariedade enquanto modelo de contratação, se desinvestiu no setor em nome de cada instituição procurar o seu próprio financiamento – essa terra prometida que nunca ninguém chegou bem a avistar.

Ao longo deste processo de avaliação, tive oportunidade, enquanto Presidente da Universidade Comum, de participar num momento de reflexão sobre a matéria, através de uma posição escrita e enviada à Comissão em causa. Feliz ou infelizmente, a análise crítica que tecemos a um diploma tão central para a vida académica do país como é o RJIES, é partilhada por muito mais organizações e representantes do setor. O mal-estar sente-se há demasiado tempo e esta avaliação tardou a acontecer. Porém, seria um erro desperdiçar este momento para relançar um debate adormecido.

Ao contrário da febre oriunda das políticas públicas do New Public Management que deu origem ao atual RJIES, o seu balanço é bem mais negativo e contrastante com a promessa outrora formulada de um Ensino Superior e Ciência muito mais autónomos, livres e eficientes. É o próprio relatório que o refere:

O novo inquérito (2023) feito 15 anos depois da aprovação do RJIES mostra um panorama totalmente oposto ao observado em 2003. As opiniões colhidas junto das Universidades, do CRUP, das Universidades fundacionais e dos seus curadores consideram a experiência positiva e querem o seu aperfeiçoamento. Porém, existe um grande número de respostas (associações de estudantes, organizações sindicais e uma percentagem claramente maioritária de docentes e investigadores e pessoal técnico, administrativo e de gestão de Universidades e Politécnicos) com uma visão claramente negativa do RJIES considerando que provocou a perda de democraticidade, a desmotivação dos membros da Academia e a falta de identificação com a atividade da instituição, a concentração de poder, o aumento do clientelismo, do compadrio, da corrupção de valores e do ressentimento, o divórcio entre a comunidade académica e os dirigentes.”

Um dos pontos fundamentais em 2007 passou criar uma arquitetura institucional que impedisse uma efetiva participação, com direitos e deveres, da comunidade académica na discussão e decisão da estratégia das instituições a que pertenciam. O Reitor passou a ser eleito através de um novo órgão no qual têm assento membros externos à comunidade académica, em muitos casos, com mais poder de voto do que estudantes ou funcionários não docentes. Todos os precários do sistema não têm poder de voto porque não fazem sequer parte dos cadernos eleitorais das instituições. Em suma, e à luz da lei (ainda) em vigor, são mais externos do que os atuais membros externos. Uma injustiça que precisa de ser eliminada de uma vez por todas. O relatório dá, justamente, voz a esse descontentamento, quando afirma:

“Quanto à eleição do Reitor/Presidente existe uma enorme maioria (80%) a favor da sua eleição por uma assembleia/colégio alargado e de que seja eleito entre membros da instituição.”

O debate em torno das políticas públicas para a Ciência em Portugal tem sido marcado pelas preocupações com a proliferação da precariedade junto da classe e no modelo de gestão que a promove. O Sistema Científico e Tecnológico Nacional (SCTN) O caminho que foi trilhado nas primeiras duas décadas deste flagelo (num primeiro momento do início do milénio através daa consolidação da bolsa enquanto instrumento de contratação; num segundo momento a partir da criação das instituições privadas sem fins lucrativos) produziu uma verdadeira fábrica de precários. Mão de obra altamente qualificada que é obrigada a escolher entre a precariedade infinita, a emigração ou o desemprego, já que nem o tecido económico português e as instituições públicas continuam sem capacidade e vontade de absorver esta massa crítica. O relatório, mais uma vez, aponta para a perversidade do sistema aquando da criação do modelo fundacional e das instituições privadas sem fins lucrativos à volta do perímetro das universidades. Em vez de facilitar a gestão, facilitou-se o despedimento, criando um verdadeiro offshore de direitos laborais.

“A necessidade de tornear estas dificuldades levou à proliferação das IPSFL o que por sua vez criou um problema de falta de estabilidade de emprego dos investigadores contratados por estas entidades. Esses investigadores, para além da precariedade laboral, são confrontados com a não aplicação do RJIES, sendo impedidos de votar e/ou ser eleitos na IES a que a IPSFL está afiliada. Também o Programa de Regularização Extraordinário dos Vínculos Precários na Administração Pública (PREVPAP) excluiu a maioria dos investigadores. Esta situação tem sido denunciada por diversas entidades, como a ANICT, a OTC, a Universidade Comum e a ANFUP. Como soluções possíveis aponta se a já referida integração no RJIES da existência de dotações de recursos humanos para investigação e o aumento da permeabilidade entre as carreiras docente e de investigação (Universidades de Coimbra e dos Açores)”.

Chegados a 2024, sabemos que o investimento público em Ensino Superior e Ciência nunca recuperou desde os grandes cortes iniciados em 2010. Estamos na cauda da OCDE no que toca a investimento do PIB neste setor. Por outro lado, os principais responsáveis destas instituições, honrosas exceções, assumem um papel de captadores de investimento privado, ao invés de usarem a sua capacidade negocial para, junto dos governos, exigirem um cabal financiamento para pagar os salários dos seus colegas e não deixar estudantes desistirem de estudar por não terem um quarto onde dormir ou dinheiro para pagar as propinas. É um verdadeiro mundo ao contrário. É um setor que, pela sua atual estrutura piramidal de gestão, não responde enquanto comunidade e castiga os seus elementos mais vulneráveis: estudantes pobres, precários da ciência, docentes convidados. 

É este o resultado da aplicação dos princípios da gestão privada num serviço público que, dia após dia, se desfigura. Cabe à minha geração, em conjunto com os mais experientes ativistas académicos, reverter as regras do jogo e recuperar aquilo que é nosso: uma Universidade que comunique connosco, responda às nossas necessidades e anseios, não desista de ninguém. A Democracia perdura se as suas instituições corresponderem a novos horizontes de futuro. A Universidade não está fora dessa equação.

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