Difícil é ser perdoado
Corro na tua direcção como uma seta a caminho do alvo. Sabendo que o que me empurra é a amizade ou o desgosto, provavelmente ambos, acelero o passo para que o meu corpo encontre finalmente o teu. Morreste. Disseram-me ao telefone que morreste. Não te vejo há vários anos e, sinceramente, não consigo acreditar. Penso que esta é mais uma das tuas surpresas extravagantes, como quando disseste que não podias ir à minha festa de aniversário porque estarias na terra da tua avó e, afinal, tinhas ido fazer o transiberiano.
Não querias que ninguém soubesse antecipadamente, nunca percebemos porquê. Quando descobrimos uma fotografia tua na Praça de Tiananmen, limitaste-te a dizer que as pessoas na Ásia eram maradas e incríveis, e que te tinhas apaixonado por uma chinesa. Quando éramos putos, invejava-te o estilo descontraído e as miúdas que permutavas à mesma velocidade com que trocavas de cuecas. Eras uma espécie de herói — confiante e misterioso. Não havia nada que te corresse mal, safavas-te sempre. E hoje saí de casa literalmente a correr para vir ao teu funeral, embora não acredite que me estejas a fazer uma coisa destas, logo agora que estávamos zangados. Logo agora que não te posso pedir desculpa.
Sei que nunca me arrependi tanto. Nestes anos em que não nos vimos, não houve um só dia em que não pensasse no murro que te dei e no quanto me arrependo. Mesmo agora, a correr a caminho do teu funeral, com as lentes embaciadas de suor ou das lágrimas, não sei, não paro de pensar na tua cara depois de te ter batido. Na forma como me encaraste com olhos definitivos. Entro veloz no cemitério, sinto-me uma seta a transpor carreiras de ciprestes, e apercebo-me do quão ridícula é a minha urgência. Os teus familiares junto à casa mortuária — o teu irmão, os teus sobrinhos tão crescidos; meu Deus, perdi tanta coisa — também me estão a ver. Devem pensar que enlouqueci.
Eu próprio sei que não estou bem, acelero atabalhoadamente para uma cerimónia que pede silêncio e lentidão. Todo eu sou remorso em polvorosa. Porém, quando vejo a cara enlutada da tua mãe e percebo que isto é mesmo a sério, o meu corpo-seta verga. Não se trata de mais uma das tuas brincadeiras de mau gosto. Vou ter de te ver morto. Cumprimento frugalmente a tua mãe, não estou capaz de lhe dizer nada, e entro, ofegante, na casa mortuária. Estás ali. O alvo é real, mas agora deixei de me sentir seta. O teu corpo dentro de uma caixa. Como é que é possível? Se estivesses vivo estaríamos lá fora a dizer parvoíces, como quando fomos juntos ao funeral de um primo teu afastado e acabámos um bocado bebidos a trocar piadas — um clássico dos funerais. E agora estás aí, metido nesse fato irrevogável de madeira.
Tenho de te pedir desculpa. Sei, como Shakespeare, que “difícil não é pedir perdão, é ser perdoado”. Acho que não tens noção de que vou passar mal o resto da vida se sentir que não me ouviste. A sério, vais ter de me ouvir. Um amigo sabe ouvir e sabe perdoar, não me falhes agora. Vou ter de me aproximar de ti e há várias pessoas que me olham como se eu estivesse louco, embora ninguém pareça estar em boas condições. Toda a gente gosta de ti. Toda a gente, aqui, está a sofrer. Oiço a minha respiração desgovernada de búfalo, o cabelo molhado de suor que me escorre pelo pescoço e que me ensopa a gola.
Aproximo-me de ti como uma seta em câmara lenta. Estás jacente e imóvel, quase irreconhecível, meu querido amigo, tinha tantas saudades, e agora tornam-se eternas. Estou tão perto do teu corpo morto. Nem pareces tu. Desprezo-me e desdenho a correria para chegar até ti, não te vou pedir desculpa. Não vale a pena. Já não estás aqui. Murmuro, então, num fio de som quase inaudível — falamos depois.