Direitos humanos v. “homem forte”
O meu texto tem três protagonistas: o grego Xenofonte, um dos maiores escritores da história da Humanidade; o apóstolo São Paulo; e o taxista de Coimbra que, ontem, dia 30 de Junho de 2019, me sujeitou ao discurso, que eu pensava já morto e enterrado: «isto é preciso um Salazar».
Caiu-me a alma aos pés. Logo por azar, eu tinha lido ontem de manhã no «Guardian» que Vladimir Putin declarou recentemente que o pensamento liberal já não corresponde ao anseio da maioria da população mundial: o que as pessoas querem é um «homem forte». Quando li o artigo, entristeceu-me, é claro, a realidade que Putin representa; mas pensei que, felizmente, não se aplica a Portugal. Tivemos 48 anos de ditadura. Ficámos escaldados para sempre.
O discurso do taxista de Coimbra – em que ele não só ansiava pelo novo Salazar, mas por um novo Tarrafal – levou-me a pensar quão frágil é esta «moda» recente dos direitos humanos. Já existe civilização humana há tantos séculos. E, na verdade, só na segunda metade do século XX se conseguiu codificar legislativamente nalguns países que a vida humana vale alguma coisa; que a dignidade humana vale alguma coisa; que o ditador, o «homem forte», não está automaticamente desculpado de todos os crimes contra a humanidade só porque é um «homem forte».
O problema é que o «homem forte», indiferente a meios para chegar aos seus fins, sempre teve teve propagandistas de primeiro calibre.
Já Hesíodo no século VII a.C. dizia: «é de Zeus que vêm os reis». A admiração de gregos e de romanos por «homens fortes» que levam tudo à frente (com absoluta desconsideração pelo sofrimento de outros) é bem conhecida.
Xenofonte, aluno de Sócrates, ficou célebre por vários textos biográficos que escreveu sobre homens que nós hoje consideraríamos cruéis infractores dos direitos humanos, ditadores e criminosos de guerra: textos sobre Ciro, sobre Hierão, sobre Agesilau.
Este último suscitou da parte de Xenofonte uma admiração especial: tudo o que Agesilau fazia era, para Xenofonte, prova da sua suprema inteligência política. Um episódio contado por Xenofonte passa-se em Éfeso, quando Agesilau teve a «brilhante» ideia de pôr à venda, no mercado de escravos, persas e aliados dos persas que os seus soldados tinham capturado, com o requinte de malvadez de os pôr à venda completamente nus. Os gregos, como sabemos, conviviam com toda a naturalidade com a nudez masculina; mas persas e outros povos por eles considerados «bárbaros» tinham o máximo pudor em relação a isso. O golpe de génio de Agesilau, na visão de Xenofonte, foi pôr aqueles homens à venda numa situação que, para eles, seria a mais confrangedora de todas. Nós lemos isto e pensamos em crueldade de nível nazi; para Xenofonte, o homem forte, por ser forte, é louvável em tudo o que possa vincar ainda mais a sua força e sublinhar a abjecção dos seus rivais.
Mais tarde, o «político forte» encontrou no apóstolo São Paulo um propagandista que lhe deu gás quase até ao século XVIII, altura em que se começou finalmente a pôr em causa o Absolutismo e o direito divino dos reis (bom, em Inglaterra isso já acontecera no século XVII, quando cortaram a cabeça a Carlos I, o que para a Europa da altura constituiu um acto de «ateísmo»). Quase até ao fim do século XVIII? Desculpem, não me estava a lembrar de Salazar e Franco e Pinochet e de outros absolutismos cristãos no século XX…
Pois São Paulo escreve que quem resiste à autoridade opõe-se à ordem de Deus, porque as autoridades existentes foram ESTABELECIDAS POR DEUS (Romanos 13:1-2). Todos nós ouvimos recentemente os apoiantes de Trump dizer «God wanted Donald Trump to be President of the United States». A infeliz secretária de imprensa (que entretanto se demitiu) declarou uma vez que a autoridade do Presidente Trump estava consagrada na Bíblia. Evangélicos brasileiros e ideólogos de boi/bala/Bíblia acham o mesmo de Bolsonaro. Voltámos a Hesíodo: «é de Zeus que vêm os reis».
Queremos voltar 2700 ano atrás, ao século VII a.C. de Hesíodo? Porque no fundo é isso que representa dizer «o que faz falta aqui é um Salazar, o que faz falta é um Tarrafal».
Nós não-absolutistas, nós liberais e democratas, que não queremos mercados de escravos nus, nem campos de concentração, nem queremos ser governados por Salazares e Putins e outros «homens fortes» temos de continuar a fazer tudo por essa coisa que Putin considera fora de moda (a democracia liberal) e por essa coisa que, na história da humanidade, só teve ainda a duração frágil de uma moda: os direitos humanos. Porque são revogáveis a qualquer momento. E nos poucos lugares da Terra onde se implantaram um bocadinho desde o século passado estão, a olhos vistos, a ser arrancados pelas raízes.