Discursos do colonialismo: entre ‘O Coração das Trevas’ e ‘Quando Tudo se Desmorona’

por Tiago Vieira da Silva,    5 Maio, 2017
Discursos do colonialismo: entre ‘O Coração das Trevas’ e ‘Quando Tudo se Desmorona’
Em Maputo, os heróis do colonialismo desapareceram do espaço público depois da independência – Fotografia de Ricardo Achiles Rangel
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O presente conserva ainda as marcas do processo colonizador – não apenas nas nações africanas, mas também no imaginário dos países europeus que outrora as governaram; sobretudo entre as famílias que abandonaram as colónias após a sua independência é partilhada uma memória colectiva, à qual por vezes nem os próprios descendentes dessas famílias – que nunca viveram em África – ficam indiferentes. Este sentimento saudosista, ainda hoje muito vivo, é sintomático da maneira como o imaginário colonial se consolidou ao longo da história – essencialmente através da relação heróica e romantizada do indivíduo europeu com África, que expugnou durante séculos a perspectiva do indivíduo colonizado.

Em 1899, Joseph Conrad, naturalizado britânico, publicou pela primeira vez O Coração das Trevas na revista Blackwood’s Magazine, numa série dividida em três partes; em 1958, dois anos antes da independência da Nigéria, Chinua Achebe, nigeriano, publicou Quando Tudo se Desmorona – duas perspetivas totalmente opostas da colonização em África. Os títulos das obras vêm imediatamente ilustrar a imagem de África que será projetada por cada um dos autores: no livro de Conrad, o coração das trevas como o no man’s land, o espaço recôndito e obscuro algures no Congo, desconhecido pelo indivíduo europeu do ocidente, onde ele chega depois de um tormentoso percurso pelo rio, e, no livro de Achebe, o mundo que se desmorona, aos olhos de Okonkwo, o protagonista, com a chegada dos colonizadores britânicos.

Com a emancipação dos estudos culturais, mais especificamente, o cultural turn, entre as décadas de sessenta e setenta, presenciou-se a eclosão de diversos estudos, sobretudo pós-coloniais e feministas, que, entre muitas reivindicações, se empenharam num processo de desconstrução cultural dos territórios, libertando-os de estigmas raciais e de género. Não obstante, novos olhares começam a surgir mesmo antes do chamado cultural turn e do surgimento do termo ‘pós-colonial’, como se verifica com a obra de Chinua Achebe, lançada em finais da década de cinquenta. Ainda assim, o domínio duradouro do discurso hegemónico europeu consolidou uma ideia de cultura que, mesmo tendo sido repensada pelo cultural turn, continua a manifestar marcas da longevidade desse discurso.

Mas de que forma é que o discurso hegemónico europeu operou a fim de consolidar uma ideia de cultura que pretendia legitimar a exploração colonial e a subjugação das culturas desses territórios? Mendes Corrêa disse que a cultura é tudo aquilo que o homem acrescenta à natureza – afirmação aparentemente simples, que nos leva a interpretá-la literalmente, sem que sejam necessárias outras leituras – todavia, ao constatarmos que esta frase faz parte do seu livro Raças do Império (1943), obra charneira da ideologia imperialista que se queria ver difundida durante o Estado Novo, somos imediatamente forçados a reinterpretá-la. O autor não fala tão-só daquilo que o homem acrescenta à natureza ‘no seu próprio espaço’, mas também noutros espaços onde já se encontram radicadas outras culturas. Estas culturas são assim invadidas, profanadas e transformadas sob a escolta das teorias fundamentadas numa noção de ‘naturalização’ que era sustentada pela explicação ‘científica’ da superioridade de certos grupos humanos sobre os outros, de forma a legitimar o domínio territorial, a opressão e a subjugação dos povos colonizados.

Ainda assim, o discurso de Joseph Conrad em O Coração das Trevas não será essencialmente ‘pró-colonial’; esta afirmação parece contraditória ao lermos algumas das descrições do autor, que refere o “grandioso espírito do passado no estuário do Tamisa”, os “cavaleiros andantes do mar”, enaltecendo a sua coragem de “encarar as trevas” e de se aventurarem nos mais “ermos recantos da Terra”. Contudo, ao mesmo tempo, Conrad descreve um Congo assolado pela falta de comunicação entre as várias regiões colonizadas, pela existência de leis desumanas, desconhecidas pela Europa, pelas consequências hediondas da escravização e da repressão dos congoleses nativos – imagens atrozes que influenciarão a experiência densa e desconcertante que Charles Marlow vivencia durante a sua viagem pelo rio a fim de “trazer o coronel Kurtz de novo à civilização”. Todavia, ainda que possamos louvar a denúncia que Conrad faz do colonialismo através de descrições tétricas, violentas, não podemos esquecer que o autor fala de uma colónia da Bélgica, não do Reino Unido – já que ele, nascido na Polónia, acabou por obter a nacionalidade britânica – e, portanto, a sua crítica pode não se prender unicamente com o colonialismo em geral, mas especificamente com as políticas de colonização da nação belga durante o reinado de Leopoldo II.

Há quem denote em Joseph Conrad uma visão ‘humanista’ na representação dos congoleses nativos – sobretudo os que se encontram à mercê da barbárie dos colonizadores – porém, esta opinião não é unânime, e O Coração das Trevas surge comummente como alvo de muitos autores, sobretudo nos estudos pós-coloniais. Chinua Achebe, na sua comunicação “An Image of Africa: Racism in Conrad’s Heart of Darkness” em 1975, despreza a representação de África desenhada por Conrad, acrescentando ainda que:

«If there is something in these utterances more than youthful inexperience, more than a lack of factual knowledge, what is it? Quite simply it is the desire — one might indeed say the need — in Western psychology to set Africa up as a foil to Europe, as a place of negations at once remote and vaguely familiar, in comparison with which Europe’s own state of spiritual grace will be manifest.»

Chinua Achebe condena as representações adulteradas de África encabeçadas pelos escritores ‘ocidentais’, e sobretudo o facto de terem sido estas as dominar o  pensamento humano ao longo da História. Contudo, a visão de Charles Marlow é o reflexo fiel da própria percepção que o indivíduo europeu tinha de África – ainda que, neste caso, o indivíduo em questão seja um homem sensível, que não permanece indiferente às práticas desumanas do colonialismo. Chinua Achebe, por sua vez, subverte esta perspectiva – a europeia, ocidental, do ‘homem branco’ – ao apresentar, em Quando Tudo se Desmorona, a desintegração cultural de uma comunidade com a chegada dos colonizadores britânicos. Tal como Conrad, Achebe situa a sua história num território da África subsariana – a Nigéria – mas começa por pintar um retrato minucioso de um mundo pré-colonial, uma comunidade igbo de Umuofia composta por nove aldeias, os seus costumes, tradições, mitos e práticas do quotidiano – pois também Achebe tinha ascendência igbo – e, posteriormente, as drásticas transformações que ocorrem com as tentativas de cristianização da tribo pela mão dos missionários britânicos.

«“Perhaps I have been away too long,” Okonkwo said, almost to himself. “But I cannot understand these things you tell me. What is it that has happened to our people? Why have they lost the power to fight?”».

Achebe, Chinua: Things Fall Apart (1958)

Okonkwo recusa peremptoriamente os ensinamentos trazidos pela colonização britânica, mas, percebendo que luta em vão, acaba por cometer, movido pelo desespero, um crime contra as crenças da sua tribo – suicida-se. Ao fazê-lo, torna-se indigno de ser enterrado pelo próprio clã, já que o suicídio é visto como uma abominação. Okonkwo renega até ao fim a ideologia imperialista ocidental difundida pelos britânicos – que justifica as suas acções com base na responsabilidade moral de levar a civilização – isto é, o seu modo de vida – às tribos dos territórios considerados ‘selvagens’.

A repulsa pela ideia de culturas ‘selvagens’ fez também com que se consolidasse um arraigado preconceito contra os indivíduos que adoptam livremente o ‘modo de vida’ dos indígenas africanos, como o coronel Kurtz de O Coração das Trevas, que conserva com África uma relação enigmática, mística, profusamente sentimental. Em O Coração das Trevas, porém, Charles Marlow, que ficou delegado de resgatar Kurtz da selva, pensa nele com deslumbramento, fascínio, como um indivíduo cuja visão da vida por vezes cobiça, jamais como o ‘cafrealizado’ louco que adoptou inexplicavelmente um modo de vida primitivo. A forma como Joseph Conrad narra o processo de introspecção de Charles Marlow ao longo da sua viagem é o que nos faz vislumbrar O Coração das Trevas, não como propaganda colonial, mas essencialmente como a experiência desconcertante, tetricamente romântica, de um indivíduo europeu pelos espaços colonizados e não colonizados de um território africano.

Todavia, o imaginário colonial do ocidente não exalta apenas a imagem dos países africanos colonizados, em que se legitima a exploração territorial e a subjugação da população nativa. Também os territórios não explorados, intocados, por onde enveredam os indivíduos europeus em busca de aventura fazem parte da cultura visual da África romantizada, que encontra grande referência na vida de David Livingstone, considerado um dos grandes exploradores do continente, e que veio a morrer numa aldeia tribal da Zâmbia. Seja a África da propaganda colonial, a África das aventuras, a verdade é que, ao lermos Quando Tudo se Desmorona, a imagem de África é talvez a mais assoladora de todas. Mesmo que Conrad desenhe um retrato perturbador das práticas coloniais na sua obra – com as descrições muito visuais dos congoleses moribundos que vão sucumbindo à doença e à fome sob o olhar indiferente dos colonizadores – a visão de Chinua Achebe distingue-se pela sua familiaridade com a comunidade que vemos ser explorada, que conhecemos antes e durante a expedição dos missionários, e sobretudo porque o protagonista não é uma vítima sem voz, mas um indivíduo cuja angústia se estende além do óbvio sofrimento físico que nos mostra O Coração das Trevas: a sua inquietação com a presença dos missionários, com a perda dos valores e costumes nos quais sempre acreditou, com a imposição da doutrina cristã.

É vasto o legado literário inspirado pelo colonialismo africano, ainda que a voz dos nativos tenha tardado a manifestar-se. Os processos colonizadores vieram conceber um imaginário amplo, no qual África assome como espaço de deslumbramento, fascínio, lamento, saudosismo – uma imagem romanticamente idealizada, de estereótipos visuais que os estudos pós-coloniais se empenharam em reivindicar, nunca renegando o papel civilizacional do eurocentrismo como crucial na própria identidade das respetivas nações; as suas consequências históricas são analisadas num presente ainda marcado pelas mesmas. E, neste sentido, tanto O Coração das Trevas como Quando Tudo se Desmorona apresentam, individualmente, sólidos e complexos discursos do colonialismo que ainda hoje são pertinentes para  analisar a hercúlea e simbólica dimensão que a África deteve, e continua a deter, no imaginário dos países envolvidos no processo colonial.

Notas de referência:
Achebe, Chinua
(2006) Things Fall Apart, Penguin Books, London
Achebe, Chinua. An Image of Africa: Racism in Conrad’s ‘Heart of Darkness, Massachusetts Review. 18. 1977. Rpt. in Heart of Darkness, An Authoritative Text, background and Sources Criticism. 1961. 3rd ed. Ed. Robert Kimbrough, London: W. W Norton and Co., 1988, pp.251-261
Conrad, Joseph (1995): Heart of Darkness & Other Stories, Wordsworth Classics, London
Corrêa, Mendes (1943) Raças do Império, Porto: Portucalense Editora.

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