Dizem o que pensam, mas não pensam no que dizem

por Manuel Clemente,    27 Novembro, 2020
Dizem o que pensam, mas não pensam no que dizem
Manel Clemente / DR
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Apesar de ser assumidamente contra qualquer tipo de censura, dou por mim a questionar se estaremos aptos a usufruir da nossa liberdade de expressão. Este direito conquistado há 46 anos encontra-se a atravessar uma crise de meia-idade. Isso reflete-se na inaptidão para discutir os temas que estão na ordem do dia. Ainda se confunde a arma da voz com o “dizer o que me apetece”. E é isso que está a acontecer. Andamos todos aos gritos, a ver quem tem o maior megafone. Seja nas redes sociais, nos media ou num dos 72 grupos de WhatsApp em que estamos. Ninguém se entende e isso talvez seja fruto do clubismo com que assumimos as nossas posições. Somos nós contra eles. A resistência ao ponto de vista do outro encarna num fanatismo alienado que impossibilita qualquer entendimento. Será possível obtermos um resultado diferente, se continuarmos a insistir neste modus operandi?

Durante um período da minha vida, ter razão era das coisas mais importantes para mim. Queria provar que estava certo a todo o custo. Genuinamente (e com alguma ingenuidade à mistura também), acreditava que provar o meu ponto de vista era essencial para me poder afirmar. Mesclava as minhas opiniões com a minha identidade, daí ficar tão ofendido quando alguém discordava do que eu dizia. Por experiência própria, posso garantir-vos que esta é das piores formas de desperdício de energia. Ficava exausto a tentar convencer os outros e com uma amargura inimaginável. 

A melhor forma de garantirmos que não vamos conseguir passar a nossa mensagem é rebaixar a posição do outro. É aqui que o caldo entorna e afoga qualquer remota esperança de um entendimento. A ofensa gratuita vulgarizou-se e o acesso a um teclado veio revelar o carácter de muita gente dita “normal”. Não quero generalizar, no entanto, vejo as caixas de comentários como um excelente barómetro para a frustração travestida que anda por aí. A pessoa que nos cumprimenta de forma simpática na rua é a mesma que destila ódio numa qualquer publicação do Facebook. Até quando vamos aguentar esta panela de pressão esquizoide? Isto remete-me sempre para o habitual espanto das pessoas, assim que tomam conhecimento do ato hediondo do vizinho do lado: “mas ele era tão boa pessoa…”.

Mais do que nunca, são colocadas questões bastante pertinentes em cima da mesa: o racismo, a sustentabilidade ambiental, os direitos das mulheres, entre outras. Já para não falar, claro está, da pandemia que atravessamos. Por serem temas trend, todos procuram estar na posse de uma opinião. Melhor ou pior fundamentada, o que importa é ter qualquer coisa para dizer. Como em todas as modas, ninguém quer ficar de fora. Tendo em conta que poucos são aqueles que realmente se debruçam sobre a situação, isto acaba por dar origem a discursos frágeis e mal amanhados. Nestas ocasiões, em detrimento do estudo, da reflexão e da humildade, assistimos a uma tendência para se levantar a voz, ser agressivo de forma desproporcional e desonesto intelectualmente.

É tentador colocar a nossa opinião à frente da boa educação, do civismo e da empatia. Lá está, uma vez mais: somos nós contra eles. Sentimos necessidade de erguer uma bandeira que nos faça sentir um zé-alguém, mesmo que o estandarte não seja nosso. Acredito que a polarização no debate acaba por ser apenas um reflexo do caos interno que cada um vive. Ainda não organizámos a nossa casa e já queremos arrumar o mundo. Não é assim que as coisas funcionam e o resultado está à vista.

Ser assertivo é diferente de ser agressivo. Ter convicções fortes não pode toldar-nos a capacidade de dar parte fraca. Em vez de discutirmos para elevar a fasquia coletiva, andamos mais preocupados em jogar ao “eu estou certo e tu estás errado”. Será que as coisas não seriam diferentes se aceitássemos aqueles que têm um ponto de vista diferente? Não digo concordar, nem resignar, mas simplesmente chegar à conclusão que vão sempre existir pessoas com ideologias distintas das nossas. É algo inevitável. Por mais detestáveis que sejam as suas posições, não é com ódio e ridicularização que vamos cultivar a harmonia. 

A ignorância não se combate com mais ignorância. A violência não se resolve com guerras. A mudança acontece quando nos colocamos nos pés do outro e tentamos entender os passos que o levaram até ali — só assim conseguiremos chegar a algum lado.

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