Do espírito de David Lynch e da morte: homenagem ao sonhador e aos seus sonhos

por Afonso Marrocano de Almeida,    8 Fevereiro, 2025
Do espírito de David Lynch e da morte: homenagem ao sonhador e aos seus sonhos
David Lynch / Fotografia da Lynch Foundation

“The physical body drops off, but we’ll all know each other again” – David Lynch (1946-2025), em entrevista para a revista Sight and Sound, 25 de Novembro de 2024)

Talvez seja por a sua presença nos parecer tão alheia, superior à realidade que a notícia do falecimento de David Lynch tenha provocado tais ondas de choque pelo mundo artístico e cultural como raras vezes se viu. Afinal as leis da natureza, na sua mais mundana e humilde forma como mortalidade, também se aplicam a tal figura, trabalho e persona principais sinónimos de idiossincrasia e do sobre-humano. Parece que o homem dos sonhos cessara de sonhar.

Mal saíra do berço e já o cinema era apropriado como ferramenta para escapar à pessimista monotonia da vida orgânica. Um veículo de retrato dos sonhos tanto na sua idealista e espiritual forma como na sua psíquica e inconsciente. Muitos artistas os procuraram traduzir com sucesso por via da sétima arte, desde os revolucionários esforços do casal de Maya Deren e Alexander Hammid, aos trabalhos vitalícios de grandes autores como Luis Buñuel e Ingmar Bergman. Porém, nenhuma figura terrestre ou extra conseguiu materializar a maquinaria de tão extraordinário fenómeno humano como David Lynch. Em todo o seu alucinante, labiríntico, etéreo e apaixonante ser, do sonho como janela para os mais escondidos remorsos pessoais e coletivos e como miradouro para o horizonte do futuro ideal, da utopia.

(O Homem Elefante, The Elephant Man, 1980)

O mais poderoso veículo de confrontação intelectual e de libertação espiritual, serão os sonhos o derradeiro caminho para a verdade, calçadas suas inacessíveis pela realidade e seus limitantes vícios? O que dirão sobre a morte, a mais aborrecida e desanimadora das facetas da física? Onde estará David Lynch – se é que ainda está?

No ying-yang que compõe o ethos lynchiano, é talvez a metade espiritual a que mais peso assume. Por conseguinte, não se pode relacionar Lynch e espírito sem se mencionar a sua vitalícia e apaixonada prática de meditação transcendental. O alcance do mais pleno estágio de consciência, o usufruto total das suas capacidades. Felicidade pura ou “pure bliss” como refere o próprio num icónico vídeo de explicação. Se o artista tinha um amor maior que as artes audiovisuais, seria este. Indispensável a todo o seu trabalho criativo. A título de exemplo, em entrevista para a Criterion, Lynch afirma que na véspera da gravação do seu talvez mais aclamado filme, Mulholland Drive (2001), tinha zero ideias sobre como proceder. Entretanto, após uma habitual sessão noturna de meditação, em 20 minutos consegue conjurar mais de 2 horas da mais extraordinária película. “As ideias foram aparecendo umas atrás das outras, tal como num fio de pérolas”, aponta o cineasta.

É também na forma de pérolas em cadeia que, do rescaldo do lançamento da primeira bomba nuclear, é retratado o surgimento do bem e do mal modernos em Twin Peaks: The Return (2017). Dos intensos fumos da nuvem de cogumelo que cobre o deserto norte-americano, surgem e levitam, poluindo os ares, as cinzentas esferas que comportam a maldade na forma da mística figura de BOB, pronto para virar do avesso o sonho americano de trauma em trauma que provoca e vai provocando. No espectro oposto, do sereno paraíso da White Lodge, enquanto assistem à mais recente revolução do mal na terra, os seus guardiões evocam e lançam outra esfera, esta brilhante em amarelos e dourados raios, a figura da nossa Laura Palmer (Sheryl Lee) nela inserida.

Tal bipolaridade espiritual na forma de ver os destinos dos EUA e da humanidade não está só presente nesta que acabou por ser a sua grande obra final, mas consta por todo o seu ouvre. Logo da sua primeira película, “No Céu Tudo é Perfeito” (Eraserhead, 1977), um pai (Jack Nance) em desespero com o seu repressivo seio industrial e a ceder sob o peso da paternidade, olha para uma mulher que reside no seu esquentador a cantar-lhe as virtudes do além; passando por “Veludo Azul” (Blue Velvet, 1986), uma pequena cidade de subúrbios à superfície paradisíacos, mas, por baixo dos seus verdes e vigorosos relvados, a esconderem um escuro organismo infestado por dos mais nefastos bichos. É na sequência deste último filme, do seu explorador protagonista, encabeçado pelo actor Kyle Maclachlan, e da sua premissa simbólica, que, em conjunto com um novo parceiro criativo com nome de Mark Frost, David Lynch explora a fundo esta sua visão sobre a orgânica norte-americana. Assim, nascera a revolução televisiva por Twin Peaks (1990-1991) ou da aparência da vida ideal dominada pelos fantasmas da violência, mas sempre com a indomável fé de que o amor como força máxima prevalecerá. Os sonhos como instigadores dessa crença.

Das modernas trevas que abundam pelos EUA e restante mundo fora na forma de precariedade e desigualdade, desagregação familiar, marginalização feminina e demais promíscuos e violentos vícios que inspiram e pelos quais são inspirados, será que este ciclo poderá ser interrompido? Será que é mesmo possível o mal cessar e apenas vingar o bem? Os erros da materialidade saírem derrotados pelos ascéticos ideais dos desejos e dos sonhos, os derradeiros espelhos da verdade? Teremos nós solução? Talvez, e voltando ao ponto inicial deste texto, consigam-se encontrar respostas a partir da forma como Lynch sonhava a morte, desde por as tais pérolas provenientes da meditação ou das ideias rabiscadas em guardanapos do restaurante Bob’s Big Boy. Da realidade material como a única e final ou da existência de algo mais.

Poder-se-á dizer que ninguém morre de verdade nos filmes de David Lynch (ou, então, só aqueles que merecem tal fim ao seu destino). Decorrem apenas cessações materiais, libertadora e natural consequência da nossa realidade de vidas e vícios. Diante do tempo na sua incompreensível forma, tudo o que tem um início, um fim terá. Porém, para além desta realidade do tempo, não nascemos, nem morremos. Apenas estamos sós, na paz da imaterialidade.

Mulholland Drive, (2001)

Poeta condenado pelo seu próximo como “homem-elefante”, quando John Merrick atinge a tão sonhada plenitude humana ao fazer o que não podia, o simples acto de deitar-se, do sono espontâneo tornado eterno, lá bem nos picos dos cosmos, volta a ver a sua mãe que lhe diz “Tu nunca morrerás”. Quando Diane Selwyn acorda do escapismo do seu longo sonho, o peso da realidade em remorsos, coração partido e ambições tornadas impossíveis é-lhe demasiado, apenas quer voltar a dormir, acaba consigo com um revólver, mas não com a sua Betty nem com a sua Rita que perduram com Hollywood no fundo. Mulheres num mundo de homens, quando Nikki Grace é morta por sangue feminino, o realizador aclama o término da sua obra-prima, a maldição e o seu “Fantasma” patriarcal esta vítima não conseguiram ceifar; Nikki, Sue e demais almas fêmeas estão livres do feitiço. Assassinada por um filho do trauma e por quem mais a devia proteger, quando Laura Palmer vê-se acordada dentro do que havia sonhado, rodeada pelos vermelhos do Red Room, Dale Cooper a seu lado e o anjo que lhe desaparecera a iluminá-la de novo, a rainha-eleita de Twin Peaks chora em libertação, fora do cruel mundo real finalmente se sentia protegida.

Caso Lynch esteja incorreto sobre o pós-vida, crie-se um sentido da finitude do Tudo e valorize-se a partilha do mesmo minúsculo e precioso período de anos entre nós, da sua existência e do cinema, combinação que tanto nos deixou, deixa e deixará sonhar. Se as suas crenças estiverem corretas, a fé e os sonhos as embarcações para a verdade, após os encarnados cortinados e o chão de azulejos em padrão de xadrez, lado-a-lado com um anão dançarino e um gigante modesto, voltá-lo-emos a ver.

“I’m dead… yet I live” – Sheryl Lee como Laura Palmer em Twin Peaks: The Return (Lynch & Frost, 2017), episódio 2.

Inland Empire, (2006)
Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer, Twin Peaks: Fire Walk with Me, (1992)

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