Do gosto

por Nuno Miguel Guedes,    3 Março, 2021
Do gosto
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Para quem sofre de uma terna misantropia, como é o caso deste vosso escravo, ficar em casa compulsivamente tem o seu lado positivo. Um deles é podermo-nos entregar aos pequenos nadas que formam o nosso cosmos de prazer, algo impossível de praticar no meio da multidão.

Assim, entre algumas outras coisas, existe uma actividade em particular de que não me canso: a procura e descoberta de acontecimentos exóticos na música popular. Trivialidades, factoides, bijuteria diversa que ficam alojadas no entulho dos anos e que quando expostas à superfície têm um brilho efémero que é fascinante e que muitas vezes diz mais de nós próprios do que do mundo onde nasceram. E foi numa dessas incursões que descobri a fantástica história das The Shaggs, a mais improvável banda de sempre e que foi considerada a pior de todos os tempos. Conhecem? Pois, lá está.

Acompanhem-me enquanto resumo a sua história quase inverosímil e com um final surpreendente. A banda The Shaggs nasceu em 1968 e era formada por três irmãs adolescentes: Dorothy “Dot”, Betty e Helen Wiggin. Até aqui nada de extraordinário, direis. Oh, mas há isto, logo para começo de conversa: a banda nasceu de uma profecia feita a Austin Wiggin, Jr (pai das raparigas) pela sua mãe ao ler-lhe as mãos. Terá dito ao filho então criança que quando crescesse iria casar-se com uma loira de cabelo ligeiramente avermelhado (“strawberry blonde”) e que desse casamento iriam nascer três filhas que iriam formar uma banda. Austin casou-se de facto com uma mulher que correspondia à profecia materna mas começou por ter dois filhos. Foi quando as raparigas nasceram que decidiu: a profecia está a cumprir-se.

Não hesitou: em 1967 comprou instrumentos para as meninas, retirou-as da escola e fez com que as raparigas seguissem um escrupuloso horário doméstico: estudo de manhã, ensaios durante a tarde e exercício físico antes de deitar. Desprovidas de vida social e com uma formação musical exclusivamente auto-didacta, as moças de The Shaggs apresentaram-se pela primeira vez em público num concurso de talentos em 1968. Foram recebidas com vaias e uma chuva de latas de refrigerante. Austin, apesar da vergonha das filhas, não desanimou: não só as manteve a, hum, tocar em vários bailes — com resultados semelhantes aos da estreia — como em 1969 decidiu que estava na altura da banda gravar o seu primeiro álbum. Nascia assim o extraordinário Philosophy Of The World, uma colecção de canções com música dissonante, ritmos delirantes e vocalização alegremente fora de tom ou desafinada. As letras reflectiam, de maneira inocente e desempoeirada, as preocupações das adolescentes, com destaque para o fabuloso My Pal Foot Foot, uma ode ao gato duas vezes amputado de uma das irmãs. Quem quiser pode aventurar-se em Philosophy Of The Worl, já que se encontra na íntegra no YouTube.

As reacções críticas da época foram devastadoras para as moças. Mas eis que a história muda de figura quando em 1970 o álbum começa a ser passado com insistência numa rádio. Frank Zappa vem nessa altura dizer para quem o quis ouvir que as The Shaggs eram “melhores do que os Beatles”. Philosophy Of The World tornava-se então num disco de culto, com os cem exemplares originais de uma tiragem de mil (900 terão sido roubados pelo engenheiro de som) a atingir preços colossais em leilões. De repente aqueles sons desencontrados já não eram cacofonia triste: eram um exemplo máximo de art brut, que fascinou nomes como Kurt Cobain, que incluiu Philosophy numa lista dos melhores discos de sempre.

As The Shaggs, já sem a formação original, ainda existem e tocam. Várias remasterizações e outtakes do seu álbum bizarro e incensado foram feitos para gáudio dos coleccionadores. Se existe algo que esta história ensina é a volatilidade do gosto. John Ruskin, um dos mais influentes críticos do século XIX, dizia que o verdadeiramente mau tem aspectos de genialidade. E mais: que o gosto é a única moralidade. Diz-me o que gostas, dir-te-ei não só quem és mas no que acreditas. É por isso que o culto da pior banda de sempre me oferece, ao final do dia, uma levíssima luz sobre o futuro da humanidade. Assim continue.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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