Do recomeço
O exercício é fácil e sinal claríssimo dos tempos que atravessamos. Experimentem, amigos: no vosso motor de busca preferido insiram a palavra “recomeço” e vejam os resultados. Eu digo, para poupar-vos alguns segundos e energia mal gasta: frases “motivacionais” de gente anónima, citações duvidosas e, pior do que tudo isso, Paulo Coelho. Os truísmos pululam como sapos ferozes. Alguns exemplos, ao acaso: «Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo»; «Recomeçar é doloroso»; «O importante é viver e ser feliz mesmo que isso signifique deixar tudo para trás e recomeçar, pois, na vida e no amor as conquistas são feitas todos os dias.», reflexão que não duvido ser o resultado de anos de meditação; e a minha favorita entre todas: «Nunca é tarde para recomeçar».
Tudo isto assinado e escrito com o intuito de ajudar. Pois não ajuda. Se o que foi dito e escrito puder ajudar a entender e a suportar este proverbial tapete que, outra vez, nos é retirado dos nossos pés, iria pela fala de Lady Macbeth com o definitivo “What’s done is done”. Ou a muito pouco motivacional Mary Shelley, que apesar de ter escrito uma das obras negras sobre a natureza humana – Frankenstein – ainda conseguiu lembrar que “The beggining is always today”. Ou finalmente, e porque tudo em quem vos escreve aí sempre desagua, Sinatra a cantar o que viveu em That’s Life, canção de alfaiate para os dias e a vida (e sim, a do The Joker): «I pick myself up and get back in the race».
Então afinal que tempo é este, o do recomeço? É o mais delicado de todos porque carrega um passado que terminou e obrigação de inventar outros dias que o possam carregar de forma mais leve. Pode surgir de mil e uma formas – separações, lutos, mudanças profissionais ou de lugares e pessoas – mas mesmo quando é voluntário é incerto e enganador.
Significa que vamos para algo melhor? Não: só um tolo ou um optimista – passe a tautologia – pode pensar assim. Vai-se, com sorte, para outro lugar dos dias, sem garantias de conforto nem reembolso se correr mal.
Mas é o momento que conta e o que podemos fazer com ele. O recomeço é traiçoeiro porque traz a armadilha do “agora é que é”. Nada pode ser agora sem o que foi estar resolvido e incorporado como uma lição. Não há tabula rasa da vida, para nada e em nada.
Os ciclos e os círculos sucedem-se. Os recomeços são os mais difíceis não porque antes houve uma perda mas porque é preciso gerir da melhor maneira a libertação. Há sempre uma nova pessoa que todos os dias nos implora ao espelho qualquer coisa que não se sabe o que vai ser – apenas que tem de ser feita. É difícil mudar de pele, seja porque motivo for. Mais ainda tentando que a nossa essência sobreviva à mudança.
O que normalmente nos protege da violência dos recomeços é o que ficou: valores, lugares familiares, certezas tíbias, pessoas antigas ou recentes que ajudam a mitigar a sensação de deriva. Esta é a grande sorte de quem recomeça: a lealdade de quem há muito está ao nosso lado e, mais extraordinário ainda, aqueles que tantas vezes sem percebermos deixamos entrar no meio do turbilhão e se revelam essenciais.
Um recomeço é sempre uma partida, uma navegação que apenas pode contar com um mapa antigo como guia.
É necessário, ficaremos mais sábios ou melhores pessoas? Não. Mas tenhamos compaixão ou desconfiança dos que proclamam que nunca na vida passaram por estes dias de chumbo dourado.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.