Do suicídio
Ontem foi dia mundial da Saúde Mental. Nesse contexto, decido dar espaço à questão do suicídio, que ainda é tão pouco discutida pelo peso que acarreta quer para a sociedade em geral, quer de uma forma mais particular, para as famílias nas quais algum elemento é vitimado pelo fenómeno.
Ao longo dos tempos, o suicídio foi encarado de formas distintas e, ainda que sempre tenha estado associado a doença mental — porque esta está presente desde o princípio da nossa existência coletiva — podia estar igualmente associado a questões de honra, ou mesmo políticas. Os exemplos mais frequentes são os do harakiri/seppuku dos samurais japoneses, ou as mortes voluntárias e autoinfligidas de Sócrates ou de Séneca. Estes suicídios seriam incompreensíveis na sociedade atual, em parte pela questão da sua penalização por parte da igreja católica até há relativamente pouco tempo. Esta penalização associou durante muitos anos o suicídio à culpa — levando as famílias a sentir vergonha por não haver lugar aos regulares rituais fúnebres para o morto, optando pela ocultação, criando barreiras que ainda hoje são difíceis de combater por estarem tão enraizadas (sendo que, também por esse motivo, ser religioso se tornou um fator protetor em relação a este comportamento).
Hoje em dia, importa que as pessoas saibam que a grande maioria dos casos de suicídio estão associados a doenças psiquiátricas e que essas doenças podem ser curadas, no caso da depressão, ou controladas com recurso a medicação, como no caso da doença bipolar ou da esquizofrenia.
Ainda que a depressão, por ser mais frequente, seja a doença que mais vezes vitima pessoas por suicídio, há várias outras perturbações psiquiátricas nas quais as pessoas morrem mais por esta via do que a população não doente. Por esse motivo, mais do que pensar em diagnósticos, devemos pensar em sinais que nos possam alertar para um risco de passagem ao acto. Na maior parte dos casos veremos que há um sentimento de desesperança por parte das pessoas, uma sensação de encurralamento por falta de perspetivas positivas de futuro, da imagem própria e da imagem própria aos olhos dos outros — a sensação de se ser um peso para aqueles de quem se gosta e de apenas os prejudicar com a sua existência. A conjugação destes fatores conduz, depois, a uma sensação de ambivalência em relação ao acto de pôr termo à própria vida; uma incerteza em relação à solução que se pensa estar a encontrar para o problema. Mas apenas é solução para este tipo de pensamentos, para este tipo de sensação e de incerteza, o tratamento. Esse tratamento, para além de dever ter recurso a exercício físico e psicoterapia ao longo do percurso, na maior parte dos casos requererá intervenção farmacológica como uma primeira linha. Os medicamentos antidepressivos funcionam e salvam vidas que seriam perdidas para o suicídio, mas não são os únicos agentes a ser relevantes no combate a estes pensamentos, pois como mencionado, há uma multiplicidade de quadros clínicos nos quais estes pensamentos se manifestam — a avaliação médica é essencial.
Ainda que as mulheres sofram mais de depressão do que os homens e perpetrem mais tentativas de suicídio, são os homens que acabam por ser mais vezes vitimados por este fenómeno. Não é claro o que leva a que isto aconteça, mas as hipóteses mais vezes referidas são as de diferenças em termos de controlo do impulso e personalidade, ou o facto de os homens serem, tendencialmente, mais violentos, acabando por ver as suas tentativas culminar com maior frequência num desfecho fatal.
Há vários fatores de risco para que se seja vítima de suicídio: o sexo masculino, ser-se solteiro, divorciado ou viúvo, estar desempregado, baixo nível socioeconómico e isolamento são alguns dos sociodemográficos. Há, depois, fatores relacionados com a história familiar e pessoal, sendo que doentes com doença mental grave — doença bipolar e esquizofrenia (especialmente se com comorbilidades de consumos de substâncias associadas) — algumas perturbações da personalidade, a sofrer de doenças terminais ou incapacitantes, vítimas de abusos e negligência, bem como pessoas com história familiar de suicídio ou tentativas de suicídio prévias, apresentam um maior risco de serem vítimas.
Portugal, sendo um dos países da Europa com maior prevalência de perturbações psiquiátricas, tem uma taxa de suicídio que se encontra na média, mas vem fazendo um trajeto inverso ao dos restantes países — nos últimos anos, a taxa de suicídio tem aumentado no nosso país, encontrando-se em queda no prisma da união. A cada dia, cerca de três pessoas são vítimas de suicídio no nosso país. Um dos motivos que poderá justificar esta tendência — tanto o número relativamente baixo face à prevalência de perturbações psiquiátricas, quanto uma tendência inversa — é a forma como se faz o registo dos óbitos: Portugal terá uma taxa de “mortes indeterminadas” superior à da maioria dos restantes países e sempre se discutiu que uma grande percentagem destas corresponderá a suicídios. A taxa de suicídio é relativamente elevada na população idosa e devem ser criados mecanismos preventivos direcionados para esta população e para a população entre os 15 e os 35 anos, na qual o suicídio e os acidentes de viação disputam a causa de morte mais frequente.
Uma ideação suicida com um plano é uma urgência psiquiátrica, sendo diferente de uma ideia de morte ou uma vontade de morrer mais vaga, sem perspetiva de consumação — que ainda assim, deve ser exteriorizada e levar as pessoas a procurar cuidados de saúde, tendencialmente nos Cuidados de Saúde Primários. A presença de ideação suicida torna-se especialmente preocupante caso exista história pessoal de tentativas de suicídio, se houver actos preparatórios para a consumação ou acesso a meios letais — por exemplo, armas de fogo. Nestes casos, as pessoas deverão procurar ou ser levadas aos serviços de urgência de psiquiatria, que estão em funcionamento 24h/dia. Nos casos em que as pessoas apresentem um perigo iminente para si próprias, por via de uma anomalia psíquica grave, desde que cumprindo os devidos critérios — que podem ser consultados na Lei 36/98, agora em revisão — podem ser conduzidas a um serviço, avaliadas e internadas compulsivamente por ordem judicial.
Termino esta crónica à 01h30, depois de uma urgência no dia mundial da saúde mental, como referido no início do texto. Ao longo da urgência de ontem [10 de Outubro], observei doentes com ideias de morte sem plano, ideação suicida com plano estruturado, pessoas que haviam tentado o suicídio e se encontravam arrependidas e prontas a cumprir o necessário tratamento, mas também pessoas que o haviam tentado e apenas manifestaram vontade de sair do hospital para o poder consumar. Em cada caso, a avaliação detalhada é necessária para definir o plano de tratamento, que deve ser individualizado e é dos momentos mais complexos da prática clínica diária, pela consequência não apenas de um erro de avaliação, mas de um inevitável grau de imprevisibilidade que existe em relação ao comportamento dos outros.
Se estiveres numa situação de risco podes ligar para várias linhas de apoio disponíveis aqui. “As linhas de apoio telefónico, na sua generalidade garantem o anonimato e oferecem a possibilidade de falar sobre as questões relacionadas com o suicídio com voluntários sem a pressão de uma conversa face-a-face. Falar sobre o problema ou compartilhar a dor com outra pessoa que se interessa pode ser uma grande ajuda em situações de crise.”