Dócil criança, tu, nós, frente ao poderoso reino do enigma
De tudo vamos perdendo o controlo, até do afecto que dirigimos às coisas, a atenção que lhes devemos. Ao ler “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, dou com a ideia: o que terá levado a primeira pessoa a dizer “prazer em conhecê-lo”? Estas palavras têm em si uma profundidade que não cabe na ponta dos meus dedos, apesar de se me oferecer uma folha infinita. Prazer em conhecer alguém não é uma banalidade, e a expressão faria, se às palavras atribuíssemos o seu valor, corar os mais resistentes.
A frase que uso como título para este texto é de Vergílio Ferreira. Está escrita num livro com capa roxa, onde se inscreve, a letras laranja, “invocação ao meu corpo”. O capítulo em que se encontra a frase intitula-se “A Pergunta e a Interrogação”. Neste pequeno capítulo, Ferreira fala do mesmo: “Tu dizes “tu” – que és tu? Quem és tu? Amas e odeias e sonhas e falas. Que é que isso tudo quer dizer? Que é que quer dizer isto que eu digo? Onde se legitima a voz que passa de mim para ti? Que é uma palavra? Que é que está nela e é vivo? Que é que entrou nela e há-de abandoná-la? Onde está o que significou em tantas palavras que passaram de boca em boca e se perderam pelos milénios e ninguém sabe?”
Ferreira parece denunciar neste capítulo a inquietante capacidade que o Homem tem para a banalização de conceitos – banalização que ainda no outro dia via denunciada num artigo de António Firmino da Costa sobre Competências.
Estamos constantemente a ser lembrados para a importância das coisas, como se puxados para longe da tentação natural que é tornar funcional o inútil. Há, para Ferreira, uma grande diferença entre a pergunta e a interrogação. A pergunta está no domínio do mundano, do acessível, do que só ainda não têm resposta; a interrogação aventura-se por caminhos trilhados numa floresta densa onde talvez nem nos consigamos meter. Não é possível responder a uma interrogação. Ainda assim, é na interrogação que nos devemos mover, com o objectivo único da fadiga. Não se paga uma interrogação com a resposta: paga-se com cansaço, desespero, inquietação.
Se é assim, poucas são as interrogações que nos assaltam, com certeza, e sempre as mesmas se repetem: o que está para lá, na morte; porque há a vida; Deus. Para nenhuma destas se espera resposta. Todas correspondem a um enigma. “Dócil criança, tu, nós, frente ao poderoso reino do enigma.” diz-nos Ferreira. E em frente ao grande enigma, como aos enigmas que tantas vezes se nos apresentam nos encontramos com os olhos, quando conscientes, deslumbrados.
É sobre este livro, este capítulo em particular, que no próximo sábado nos sentaremos a falar, no CAL – Primeiros Sintomas, na Rua de Santa Engrácia, número 12. Uma espécie de gruta de Ali Babá, com quarenta ladrões sob a forma de geografia: é o desconhecimento geográfico que temos que vencer para descobrir uma porta que, ao abre-te sésamo, esconde aquele sempre renovado tesouro a que se chama Teatro.
Este sábado é às 15h, e teremos a intervenção de Diana Duarte, Miguel Faria Ferreira e Teresa Coutinho. Eu estou a moderar.