“Dor Fantasma”, de Rafael Gallo: uma prova de que a perfeição pode tornar-se caótica, basta que a vida aconteça
“Dor Fantasma” mostra-se um justíssimo vencedor do Prémio Literário José Saramago 2022. O autor, Rafael Gallo (ler entrevista), consegue tudo neste livro. Desde logo, dá à obra um acompanhamento para os ouvidos dos leitores: a música. A mistura da música com a literatura poderia facilmente fracassar, mas o escritor brasileiro mostra-se um romancista experiente e, desta forma, consegue conciliar duas artes. Ouve-se o som de orquestras nos parágrafos do livro e percebe-se que o silêncio também é parte fulcral da música, como uma pausa que deixa que os sons respirem ou – na literatura – um espaço entre duas palavras ou acontecimentos. Rafael Gallo assegura assim o ritmo do seu romance. Junta-se à cadência da história a própria história e tudo fica a fazer sentido.
O livro acompanha Rômulo Castelo, um pianista virtuoso que ambiciona chegar ao pódio do mundo, ao reconhecimento dos músicos mais aclamados. Tendo no seu pai – antigo maestro – uma grande referência, Rômulo herda deste a sua disciplina para a música e para a vida. Ao mesmo tempo que a personagem principal aguarda por uma tour na Europa – que lhe dará o reconhecimento desejado ao tornar-se o maior intérprete de Liszt, tocando ao piano o “intocável” Rondeau Fantastique –, Rômulo é um professor universitário bastante exigente e desagradável para os seus alunos.
“Ao deter o aluno pela terceira vez, Rômulo faz sinal para que esqueça o piano, volte a atenção a ele. «Você almeja, de verdade, tornar-se um intérprete?» O aluno acena que sim. «Então, precisa ter mais consciência da responsabilidade que esse papel acarreta. O que tem nas mãos é uma obra-prima. Algo muito maior do que a sua própria existência; que importa o que você pensa ou deixa de pensar? Essa música tem atravessado séculos, vai continuar atravessando, mesmo depois que eu e você estivermos mortos. Mas precisa ser executada de forma correta, pelos intérpretes, para que continue a existir. Percebe a dimensão da responsabilidade?» O professor Castelo faz uma longa pausa, a fim de que o garoto, mais do que só balançar a cabeça, apreenda a gravidade com a qual lidam. «Diferentes das esculturas ou das pinturas, que perduram e preservam as marcas diretas, puras, do toque de seus criadores, a música não se mantém no tempo. Sua finitude é imediata, cada nota começa a se desfazer no ar assim que sai dos instrumentos. Então, imagine se a Pietà de Michelangelo, por exemplo, se pulverizasse assim que ele a concluísse. Se fosse necessário reconstruir tamanha maravilha, a partir de uma nova pedra?», outra pausa, a permitir que reverbere o questionamento. «Pois, é exatamente isso o que acontece com a música. Quem almeja ser um intérprete, Thiago, precisa estar disposto a erigir uma Pietà a cada vez que toca o piano. Seus dedos têm de se tornar os cinzéis que moldam o mármore bruto dos sons. Que removem do silêncio cada nota do instrumento, para esculpir de novo e de novo o legado dos compositores. Sabia que no antigo Egito o termo “escultor” significava “aquele que mantém vivo”? Pois, então. Dependerá de pessoas como você manter vivas essas obras. Zelar por elas. E o zelo exige rigor.» (…) Chegado o horário do intervalo, dispensa Thiago, que vai para a cantina. Lá, encontra Lucas tombado a uma das mesas. «E aí, como foi com você?», o colega da aula anterior pergunta, em tom de abatimento. «Tive que ouvir o sermão do Michelangelo. De novo.»”
No meio de toda a vida regrada e perfecionista está uma relação falhada com a esposa e com o seu próprio filho. Mas o pior vem depois. O pianista morre para a “vida, esse contínuo exílio forçado”, quando sofre um acidente e deixa de ver a sua mão direita, sendo esta amputada e tornada fantasma. Começa assim o início do fim de Rômulo que vê toda a tour europeia ser cancelada. As regras de toda uma vida tornadas num caos inesperado, numa personagem perfecionista e falhada. “Como pode ser? As ações de um homem serem desconsideradas na elaboração de seu destino, quando este deveria ser a consequência exata daquelas.” A cegueira da busca pela perfeição faz de Rômulo um homem frio e distante de todos. Até vil, em muitos dos casos. Esta característica é adocicada pelo autor, para os leitores que conseguem sentir compaixão e perceber os dramas de Rômulo.
A caneta de Gallo, confundida com uma batuta, guia a história por caminhos intensos e audíveis. Um livro feito numa autêntica trilha sonora clássica. E repito, o autor brasileiro consegue tudo nesta obra. Transforma acontecimentos corriqueiros em narrações profundas. Sentem-se as ironias do autor perante a figura de Deus e pressente-se, ao longo de todo o livro, a frágil condição humana a acompanhar toda a música das palavras.
A nota musical que fecha o livro – últimos dois parágrafos – é magistral. É capaz de tornar imóveis os leitores que, deixando que o último som ecoe, sorriem numa ponta de silêncio, e depois se levantam e invadem o teatro das leituras com uma forte salva de palmas.
Com este livro, de uma coesão narrativa bem assente, Rafael Gallo ousa o mesmo que Rômulo Castelo: o toque na perfeição. O falhanço do pianista – prestes a tornar-se o maior intérprete de Liszt – abre caminho à obra “Dor Fantasma”, que ganha asas de possível clássico contemporâneo. Rafael ousa assim tentar o toque na perfeição de Dostoiévski e demais autores russos, tal como Rômulo tentou tocar na de Franz Liszt. “Estala, estala, estala a medida consistente da perfeição.”