Dores de parto
Olhem, amigos: pode parecer truque velho de escriba e muitas vezes é. Quantas vezes foram escritos textos insípidos sobre a dificuldade de escrever servindo de desculpa para preguiça ou falta de arte. É muito provável que este que estejam a ler seja apenas mais um. Mas para benefício da minha auto-estima e até porque a vida está muito difícil peço-vos o favor de me mentirem mesmo que esse seja o vosso julgamento. Não faz mal, a sério. Não seria nem a primeira nem a última vez e toda a gente ficaria contente.
Mas a verdade é esta: a agrafia é flagelo que aflige os melhores e os piores, como eu. A coisa está registada e, de uma forma ou de outra, quem tem por ofício escrever regularmente alguma coisa que interesse o leitor pode cair nessa armadilha recorrente. As razões podem ser muitas: a musa que não aparece, a vidinha que se mete pelo meio e sim, até mesmo o próprio nojo da escrita, do acto de escrever. Isto dá trabalho e o mito clássico do daemon que entra pela alma dentro e sai em frases ordenadas e obedientes às convenções sintáticas e gramaticais não passa disso: um mito. Génio, existe; mas é preciso burilá-lo e percebê-lo. O famoso aforismo de Dorothy Parker sobre esta actividade continua a valer: “Detesto escrever, adoro ter escrito”. Entre o início e o final da oração existem vários mundos e desertos que é necessário atravessar com maior ou menor facilidade. Parece-me que o mesmo se aplica a todo o processo criativo mas por agora e aqui fiquemo-nos pelas palavras. Sobretudo as nado-mortas, uma população enorme de fantasmas descartáveis que assombram qualquer texto que se preze.
De nada nos vale nestas alturas – nós, os que escrevemos a partir dos dias e do que é próximo e pequeno – soltar o vampiro benigno que nos habita: sugar as conversas, os olhares, as maneiras. Quando nos sentamos para tentar transformar o que vimos e ouvimos existe sempre um obstáculo. Para variar consultei os grandes campeões desta modalidade que modestamente pratico e fiquei surpreendido com a quantidade de textos sobre o assunto. Tudo parece existir para atrapalhar: a rua, a mulher, o marido, as crianças, o barulho da máquina de escrever (de uma crónica dos anos 50…), o piano demasiado alto do vizinho. Dos que vi só Clarice Lispector proclamava a dádiva de um impulso para escrever, o “impulso puro – mesmo sem tema”. Enfim, era Clarice.
Então como explicar? Nos grandes, a aparente falta de assunto é uma ilusão de impotência, destinada a seduzir o leitor e depois arrebatá-lo com um texto de antologia. Mas eu estou longe de ser grande e esta crónica, descubro, não é um exercício de estilo mas uma confissão.
Explico: há muito para escrever. Assunto não falta. E um desses grandes que admiro, Paulo Mendes Campos, punha a sua mesa de trabalho perto de uma janela sempre que ia escrever porque, dizia ele, “a janela faz parte do equipamento profissional do escritor”. E assim consegui compreender e apaziguar esta sensação de aridez, amigos: é que não gosto nada mas mesmo nada do que estou a ver da minha janela. E nessas alturas o silêncio pode dizer mais.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.