Dos “Antivaxxers”. A sobrevalorização da ciência
É do conhecimento geral que por este mundo fora não se pode agradar a gregos e troianos. Constatamos isso quando um segmento da população se revoltou pelo uso de máscaras visto que tudo indicava a inconstitucionalidade ou um atentando contra a liberdade pessoal. Depois, revoltou-se mais um pouco pelo uso de máscara em sítios públicos…Era o que faltava, estar a passear o meu cão e não poder usufruir deste sistema respiratório que demorou anos de evolução a se desenvolver ou que Deus nos dotou, escolha-se. Depois criticamos veemente o Governo porque são um bando de palhaços que estão a fazer tudo o contrário para proteger a população. Até porque são só onze milhões, é coisa pouca. E mesmo a sra. diretora da DGS ficou infectada. Como pode? Ela não é humana…nem é provável estar em contacto contínuo com possíveis casos positivos dado carácter da sua profissão. A culpa é deste Governo porque se fosse outro governo ia ser menos palhaço.
Este conjunto de indivíduos são outliers de uma sociedade. E por outlier refiro-me aos chamados os do contra. Encara-se mais dura e crua a realidade quando afinal vemos estes mesmos indivíduos a tornar a propagação do vírus mais fácil, exactamente pela indiferença que os provoca. Mas para fazer a exceção à regra, nem todos são gregos e nem todos são troianos. Até por que dentro dos gregos uns são mais gregos do que outros e a mesma coisa acontece dentro dos troianos.
Ora, numa altura em que a comunidade científica, por esforço tecnológico e monetário, foi capaz de em meia dúzia de meses desenvolver potenciais vacinas contra esta pandemia encontramos agora os cépticos e os incrédulos – um novo tipo de outlier.
Se até ontem queríamos uma vacina, hoje não tenho tanta certeza disso. E para que não se assuma que estou a generalizar ou a ser muito sarcástico, eu próprio admito que as dúvidas são naturais à consciência humana. Até porque é a dúvida que permite o desenvolvimento. Mas quando a dúvida se mistura com ignorância estamos perante um perigo diferente. E quando a ignorância permite o descredito de quem é mais sapiente do que nós noutras áreas, então estamos mal. É com alguma impaciência que me deparo com alguns e algumas que numa de mártir se mostram contra. Até por que certamente nunca devem ter sido vacinados antes.
“Como é que a China já não tem vírus e não precisou de vacina?” – é uma das perguntas que, embora legítima, se não for explicada acaba por pairar na mente daqueles que já se encontram a duvidar e criam este tipo de ambiguidade que descredibiliza a confiança na comunidade médica e científica e nas próprias instituições que democraticamente escolhemos e às quais permitimos este tipo de abuso de poder.
A resposta para essa pergunta é simples: porque a China desenvolveu medidas de contenção dez vezes mais rigorosas do que Portugal. Enquanto Portugal andou ora a abrir ora a fechar, aliada à insuficiência de material, recursos e até de informação que afetou o Estado português, a China já com histórico de doenças infecciosas no seu território (H1N1 por exemplo) aplicou uma “formula estrita de quarentenas imediata e de testes em massa (…) tendo numa semana testado aproximadamente 5 milhões de pessoas só numa região”. É este sistema chinês de confinamento coercivo (que em Portugal tem um cariz mais pedagógico) e de testes em massa que explica o sucesso da contenção do vírus na China.
Outro exemplo que podemos usar é a Nova Zelândia, um arquipélago do Pacífico com pouco mais de quatro milhões de pessoas. A explicação para o sucesso neozelandês centra-se em três pilares: a quarentena antecipada, o que obrigou a um fecho de fronteiras também ele antecipado; comunicação efectiva do Estado e a complacência da população. Algo que por exemplo em Portugal falhou nalguns pontos, não por incompetência do Governo em si (ou de qualquer outro Governo que estivesse a governar), mas porque Portugal, embora um dos primeiros a reagir, reagiu algo tardiamente e com medidas substancialmente menos robustas no início.
Quanto à vacina em si, vamos responder a três perguntas: “Quanto tempo é que uma vacina demora a ser desenvolvida?”; “Porquê é que a vacina do Covid19 foi tão rápida?” e “Porquê é que a questão não é desenvolver a vacina mas esperar os seus resultados?”.
Para responder à primeira pergunta forma rápida, uma vacina pode demorar até 10 anos para ser desenvolvida e custa por volta de 500 milhões de dólares. Isto em condições normais de desenvolvimento. A diferença nesta caso é que a pandemia do Covid19 é uma sem precedentes, o que obrigou a comunidade científica, aliada a milhões e milhões de doações e financiamentos num curto espaço de tempo a aplicar tecnologias que há dez anos atrás não se prefigurariam. Para além disso, com o Covid19 “os cientistas já tinham um grande avanço por que não se trata do primeiro coronavírus para o qual já tinham tentado criar uma vacina. Tendo começado a desenvolver vacinas para o SARS e o MERS nos surtos de 2003 e 2012, apenas abandonando os esforços quando os surtos acabaram por desvanecer”.
Portanto, quando o Covid19 apareceu, os cientistas já tinham mais de dez anos de pesquisa e de dados e sabiam qual era o alvo a abater e isto acaba por responder de forma muito breve à segunda questão, acrescentando ainda que sobre este tema existe muita informação e explicação técnica e científica que em poucas palavras não seria capaz de expor mas que aconselho a se informar.
Por último a terceira e mais importante pergunta: agora que certamente teremos uma vacina capaz de conter de forma controlada a propagação e a própria existência do vírus, é mais importante saber os resultados dessa própria vacina. Não me refiro aos ‘resultados de eficácia’, por que esses já estarão cumpridos e verificados quando a vacina é finalizada e inoculada na população. Refiro-me ao sucesso ao longo prazo para a erradicação ou não do vírus em si. De reconhecer que pese embora tenhamos um plano de vacinação e venha este a ser aplicado dentro dos tempos definidos e previstos pelo Governo e autoridades competentes, a realidade é que até ao próximo inverno ainda teremos um certo grau de restrição e de contenção. Isto explica-se pela distribuição da vacina. Enquanto uns são vacinados, outros têm de manter o mesmo rigor. Talvez não tão fortemente exigido. Implica também questões logísticas: manutenção e conservação das vacinas, adequação dos recursos para futuros surtos, mobilização de pessoal médico, etc. Para além disso será necessário “descodificar a imunidade da vacina”. Isto significa que a comunidade científica irá determinar a probabilidade reinfecção após a população ter sido vacinada. E durante quanto tempo a “imunidade de grupo” se estenderá. Respostas para as quais provavelmente precisaremos de mais um ano para as obter.
Para concluir, a verdade é que a humanidade neste momento precisa de uma vacina. Precisa dela obrigatoriamente para sobreviver. Por que se até ontem a forma de contenção de um vírus que infetou até à data mais de 74 000 portugueses e que matou antecipadamente e sem necessidade avós e avôs, tios e tias, irmãos e irmãs com a crueldade de não permitir um último contato, a vacina é somente a nossa única salvação. Não só por que as economias dependem disso, bem como a vida individual de cada um, mas porque estamos em presença de um tipo de vírus que potencialmente poder-se-á tornar endémico, ou seja, poderemos conviver com ele para sempre. Como convivemos com o vírus da gripe normal. E tal como convivemos com outros vírus (e contra os quais fomos vacinados) talvez o Covid19 não se fique só pelo 19 mas possa ser o Covid20, Covid21, Covid22 …23 …28 …35 …48.
Mas se sossega o espírito de alguns, a vacina em Portugal será gratuita e voluntária e, como trailer da nossa série preferida, vamos poder ver como tudo se desenrola antes de chegar aqui: o Reino Unido irá começar a fazer uso deste progresso da ciência dentro de pouco tempo e mais uma vez, Portugal no seu extremo ocidental à beira mar plantado poderá contemplar de esguelha, como sempre fez, os sucessos ou os infortúnios que ocorrerão no seu mais velho Aliado e então de decidir, como sempre fez, o rumo que quer para a saúde pública dos seus cidadãos.
Crónica de David Pampillo