Dostoiévski e a questão millennial
“Lamento não poder dizer-lhe nada mais consolador, porque o amor vivo, em comparação com o amor sonhado, é uma coisa cruel e assustadora.
O amor dos sonhos anseia por uma obra rápida, de satisfação imediata e aos olhos de todos. Aqui, é verdade, chega-se ao ponto de sacrificar a própria vida, só para que a obra não seja muito demorada, mas rápida, como no palco do teatro, e que toda a gente olhe e louve. Ora, o amor vivo é trabalho e paciência e, para alguns toda uma ciência.”
Peço-vos a maior e mais merecida atenção às palavras que estão acima. Leiam, pois nelas aparenta estar todo o significado de uma vida. Da minha vida, da tua vida, da nossa vida, e da vossa vida. Poucos autores conseguiram através de palavras captar um sentimento tão humano como é a procura de sentido. Dostoiévski fá-lo como ninguém nos Irmãos Karamázov.
Esta noção de amor vivo e amor sonhado data de 1879, mas não podia estar mais atual. O que é um pouco irónico. Creio que a Rússia czarista dos mujiques, em nada se assemelha ao sítio onde vivo e onde já vivi. Posso estar desconectado da realidade. É, sem dúvida, uma possibilidade. A pobreza e a iliteracia diminuíram drasticamente e a própria estrutura da sociedade já se modificou bastante, o que me leva a crer que, provavelmente, faço uma boa leitura daquilo que me rodeia. Aliás, até vou mais longe, dizendo que esta citação faz mais sentido na nossa geração do que fazia há cento e tal anos. A existência de Instagram, Facebook e redes sociais num todo, alienadas à intitulação e à necessidade de gratificação instantânea torna o Amor Vivo em algo que merece ser relembrado prontamente.
Os millennial vão levar muita porrada na vida, contra mim falando também. Acho que carecemos de um propósito comum maior que nós mesmos. Algo pelo que valha a pena viver. Simplesmente, uma vontade que não tenha um valor de sobrevivência, mas sim pelo qual vale a pena sobreviver. A vida em si não implica um propósito, este é derivado do valor que lhe damos e àquilo que fazemos quando deambulamos por aí. Perdidos e sem rumo, parece-me ser o problema dos millennial. A raiz desta questão é muito mais profunda que uma mera escolha profissional. Ser advogado, ser médico, ser jornalista, ser polícia, ser contínuo é algo que me parece um pouco irrelevante se esta noção de amor vivo estiver impregnada no nosso espírito. O Simon Sinek numa conferência sobre a questão millennial referiu o facto de que quando se perguntava a miúdos o que eles queriam fazer, a resposta era: I want to make an impact. No entanto, não sabiam como fazê-lo. Perfeitamente normal, na minha opinião. Ao baralhar o conceito de unicidade com o conceito de propósito, chegamos, inevitavelmente, a um beco sem saída. O impacto não nasce diretamente da nossa singular maneira de estar e de ser. Nasce sim, do colectivo do que significa ser humano. Nasce do sorriso, da paciência, da tolerância inerentes à nossa própria condição enquanto espécie e não enquanto indivíduos. Assim quando substituímos as noções de grandiosidade e, de certa forma, egocêntricas, pela noção de um impacto necessário, mas muitas vezes pequeno, chegamos ao nosso destino. Destino, este, que apenas significa que estamos cá para nos fazer felizes, enquanto fazemos os outros felizes, por muito que isto signifique ser “pequeno” ou mesmo não reconhecido.
É por isso que é cruel e assustador, porque dói, porque implica olharmos para nós próprios e entrarmos em contacto com coisas que muitas vezes queremos esquecer. Implica sermos humanos, vulneráveis e reconhecer o outro como um alguém também ele humano e vulnerável. E acima de tudo, implica um esforço continuado que pode não ser recompensado. E se implica uma certa consistência e preocupação, porquê preocupar-nos? Exatamente, porque é isto que nos traz sentido e não nos deixa cair no absurdo.
Quando presos nas futilidades quotidianas, quando renunciamos à nossa humanidade, perdemos aquilo que unicamente importa, um sentido. Deixemos o amor sonhado de uma vez por todas, não nos traz nada, e apostemos no amor vivo, porque aí sim, aí reside o nosso significado.
Crónica de Afonso Delgado Gonçalves
Afonso é estudante universitário de Medicina e Filosofia, de 22 anos, entusiasta de tudo o que implica pensar e detentor de uma curiosidade infindável. Devorador de tudo o que esteja em palavra escrita, inclusive o rótulo da constituição do champô. No fundo, um aspirante wannabe a médico-filósofo.